São mundos parecidos com os planetas, mas que não estão “atrelados” a uma estrela. Terão nascido no mesmo berço das estrelas, ou serão planetas expulsos das suas órbitas e abandonados à sua sorte?
Artigo de Koraljka Mužić1 publicado no âmbito de uma colaboração entre o Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e a National Geographic Portugal.
A rotação da Terra é a razão por que as estrelas, no seu conjunto, parecem mover-se no céu ao longo da noite. A Terra, ao rodar sobre si própria, faz de nós observadores num carrossel celeste e produz a ilusão de termos o céu a rodar à nossa volta. As estrelas realizam assim, aparentemente e a cada 24 horas, círculos concêntricos nos polos celestes.
No entanto, os antigos astrónomos notaram que há “estrelas” que, embora sigam este padrão, começam a desviar-se dele ao fim de alguns dias ou meses. Adquirem a pouco e pouco outra posição no céu em relação ao pano de fundo das estrelas. Chamaram-lhes “planētoi”, ou “errantes” em grego, dando origem à palavra “planeta”.
Hoje sabemos que esse desvio dos planetas no céu é resultado do seu movimento real no espaço, o qual advém da configuração do sistema solar: os planetas, incluindo a Terra, orbitam ao redor do Sol, e estão muito mais próximos da Terra do que as demais estrelas. As estrelas também não estão fixas numa posição do espaço e têm um movimento real, mas estão tão longe que esse movimento só é perceptível com ajuda de instrumentos.
Apesar do seu nome, os planetas do sistema solar não são realmente errantes nem vagabundos, pois estão presos ao Sol pela força da gravidade. Outros planetas foram descobertos em órbita de muitas estrelas que vemos no céu – são os exoplanetas – e também eles estão agarrados gravitacionalmente à sua estrela-mãe.
Mas será que existem verdadeiros “planetas errantes” – planetas que não orbitam nenhuma estrela e vagueiam à deriva pelo espaço? A resposta é sim. Neste artigo vamos explorar como foram descobertos, as suas propriedades e as questões que ainda precisam de ser respondidas sobre a sua natureza.
Para além das estrelas
Para entender a relação entre os planetas errantes e outros corpos celestes, vamos começar por falar sobre um outro tipo de objetos bastante curioso: as anãs castanhas. As anãs castanhas partilham muitas características com as estrelas, mas têm uma diferença decisiva: não têm uma fonte de energia duradoura.
Serão os objetos de massa planetária uma extensão do processo de formação de estrelas mas para massas menores? Ou terão nascido em órbita de uma estrela, ou seja, como planetas, e posteriormente despejados dos seus sistemas nativos?
As estrelas, tal como o nosso Sol, são enormes bolas de gás que brilham porque produzem energia no seu centro através de reações de fusão de núcleos atómicos. Estas reações convertem elementos químicos leves, como o hidrogénio e o hélio, noutros mais pesados, como o carbono e o oxigénio. É a fusão nuclear no interior do Sol que gera a energia que dá luz e calor na Terra.
Porém, para que a fusão nuclear ocorra, é necessário produzirem-se altas pressões e temperaturas no interior do Sol. Isso depende principalmente da quantidade total de matéria de que o Sol é feito. Um corpo com menos de 7,5% da massa do Sol, ou aproximadamente 80 vezes a massa de Júpiter, não consegue iniciar reações de fusão nuclear no seu centro.
Portanto, existe uma massa mínima para que um corpo possa ser considerado uma estrela. Abaixo deste limite dizemos que a “estrela” é uma anã castanha. Assim, já demos a entender que uma anã castanha não realiza reações de fusão nuclear no seu interior.
No entanto, as anãs castanhas brilham. É um brilho muito fraquinho. A luminosidade de uma anã castanha é milhares de vezes menor do que a das estrelas como o Sol. Além disso, pela sua baixa temperatura, brilham sobretudo na luz infravermelha. Por estas razões, as anãs castanhas só foram descobertas com os telescópios mais avançados do mundo.
Mas de onde vem a energia que, ainda assim, as faz brilhar? Não é uma fonte de energia mas sim um reservatório de energia – a energia que ela acumulou ao converter em energia térmica a energia de movimento (energia cinética) do material que caiu sobre ela durante a sua formação. Com o tempo, ela vai gradualmente dissipando essa energia, emitindo-a para o espaço, e arrefece.
Um “calibre” planetário
Desde a descoberta das anãs castanhas em 1995, as pesquisas revelaram objetos cada vez mais leves, alguns com apenas cinco a dez vezes a massa de Júpiter. Estas são as massas típicas dos planetas gigantes descobertos em órbita de outras estrelas. No entanto, estes objetos não podem ser considerados planetas, pois não orbitam nenhuma estrela. Referimo-nos a eles como “objetos de massa planetária”.
Claramente, existe uma sobreposição de massa entre as anãs castanhas e os planetas, tornando a transição entre as duas classificações bastante indefinida. Isto levanta uma questão central: serão os objetos de massa planetária uma extensão do processo de formação de estrelas mas para massas menores? Ou terão nascido em órbita de uma estrela, ou seja, como planetas, e posteriormente despejados dos seus sistemas nativos?
Quanto às anãs castanhas mais massivas, os cientistas acreditam que elas nascem de maneira semelhante às estrelas, ou seja, através do colapso gravitacional de uma nuvem fria de gás molecular. Simulações por computador indicam que esse mesmo mecanismo pode produzir uma grande diversidade de objetos com massas que vão desde mais de 100 vezes a massa do Sol, no limite superior, até menos de um centésimo da massa da nossa estrela, ou seja, abaixo de dez vezes a massa de Júpiter. O que significa que no processo de geração de estrelas se produzem corpos com massas de “calibre” planetário.
Por outro lado, também é possível que os objetos de massa planetária tenham tido a sua origem como planetas, ou seja, em sistemas planetários, em órbita de uma verdadeira estrela. Mais tarde terão sido ejetados da sua órbita pelo encontro próximo com uma outra estrela, ou pela interação com outro planeta do mesmo sistema planetário, que são os mecanismos mais comuns. Em consequência disso, ficaram soltos no meio interestelar.
Dezenas dos objetos com massa equiparável à dos planetas foram encontrados utilizando grandes telescópios ópticos e no infravermelho a partir do solo, como o Very Large Telescope (VLT), do Observatório Europeu do Sul (ESO), no Chile, o telescópio Subaru, no Havai, e o Gran Telescopio de Canarias (GranTeCan), em Espanha. No entanto, mesmo com os instrumentos mais modernos, a nossa capacidade para encontrar planetas errantes a partir da Terra limita-se a objetos com mais de cinco vezes a massa de Júpiter.
Para identificar objetos mais pequenos, mais semelhantes a Júpiter, ou até mesmo menores, foi necessário desenvolver um telescópio ainda mais sensível. Referimo-nos ao Telescópio Espacial James Webb (JWST).
O JWST é o telescópio espacial mais poderoso já construído, com um espelho principal seis vezes maior do que o do famoso Telescópio Espacial Hubble. Está localizado a 1,5 milhões de quilômetros da Terra e opera em temperaturas extremamente baixas, para que não haja outras radiações a interferir nas suas observações.
A sua extraordinária sensibilidade na parte infravermelha do espectro eletromagnético permite uma grande amplitude de estudos, desde as galáxias longínquas aos planetas errantes, que, devido à sua baixa temperatura, emitem sobretudo no infravermelho.
Separar a luz para “separar as águas”
Como é que o JWST está a ser utilizado para encontrar os planetas errantes? Uma estratégia típica envolve captar imagens com diferentes filtros – em astronomia, as diferenças de brilho em distintos comprimentos de onda emitidos por um objeto são entendidas como a “cor” desse objeto. A “cor” do objeto está relacionada com a sua temperatura.
Mas as imagens não são suficientes, porque as estrelas e as galáxias distantes podem apresentar características de brilho e cor semelhantes às dos objetos de massa planetária que estamos a procurar. Portanto, é necessário um método adicional para confirmar a verdadeira natureza dos candidatos a planetas errantes.
Esse método é a análise da luz do objeto distribuída por todos os comprimentos de onda, ou seja, o seu “arco-íris” – aquilo que designamos o seu espectro. O espectro de um objeto astronómico contém muitas informações sobre as suas propriedades físicas e este trabalho de análise chama-se espectroscopia.
Isto viria a confirmar que os corpos com massas planetárias se podem formar pelo mesmo processo que as estrelas, e talvez até desenvolver o seu próprio sistema de luas, como um mini-sistema planetário, de que temos o exemplo de Júpiter no Sistema Solar.
No caso das estrelas e das anãs castanhas, a temperatura na sua superfície é a informação principal que podemos retirar do seu espectro. Assim, os espectros permitem discernir se o objeto identificado nas imagens é uma estrela ou uma galáxia, ou então – aquilo que procuramos – uma anã castanha, ou um planeta errante.
Isto soa fácil? Em princípio, sim, se não fosse pelo tempo necessário para registar o espectro de cada um dos candidatos. Num aglomerado de estrelas estamos a falar de, potencialmente, centenas de objetos.
Uma alternativa interessante a esta estratégia e que nos permite ganhar tempo é o uso da tecnologia de espectroscopia sem fenda (do inglês, slitless spectroscopy), em que a luz de todo o campo da imagem é dispersada por um elemento óptico e cria assim múltiplos espectros numa só imagem. Isto permite-nos obter os espectros de todos os objetos dentro do campo de visão do instrumento e elimina a necessidade de os observar individualmente.
A tecnologia de espectroscopia sem fenda, disponível no instrumento NIRISS a bordo do telescópio espacial James Webb foi recentemente utilizada para fazer a observação mais nítida e profunda da região de formação de estrelas chamada NGC 1333, na constelação de Perseu e aí procurar planetas errantes. Situada a aproximadamente 1000 anos-luz e muito jovem, com apenas um milhão de anos de idade, a região NGC 1333 contém um enxame de estrelas jovens, um verdadeiro laboratório para estudos sobre o nascimento de estrelas e anãs castanhas.
Seis novos mundos para os compreender a todos
Num artigo aceite na revista Astronomical Journal, e já divulgado pelo Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, uma equipa de cientistas, da qual faço parte, descreve um estudo em que utilizámos o NIRISS para observar NGC 1333 e procurar objetos de “calibre” planetário, ou seja, com menos de 13 vezes a massa do planeta Júpiter.
Obtivemos os espectros de mais de 600 objetos e descobrimos seis com características espectrais que indicam temperaturas muito baixas – entre 1500 e 2000 Kelvin, ou 1200 a 1700 graus Celsius (para comparação, a temperatura à superfície do Sol é de 5500° C). Temperaturas baixas indicam, como já dissemos, massas também muito baixas.
Por outro lado, procuramos num enxame de estrelas porque isso nos fornece de imediato a idade desses objetos, que tem de ser semelhante à das estrelas que constituem o enxame. A idade é uma propriedade essencial para, em conjunto com a temperatura, podermos calcular com rigor a massa do objeto.
Comparando com os modelos físicos com que explicamos as características das estrelas – como esta relação entre massa, temperatura e idade – estimou-se que a massa destes seis objetos esteja entre 5 e 15 vezes a massa de Júpiter. Somando aos outros objetos já conhecidos em NGC 1333, estimamos que esta região abrigue entre 20 e 30 objetos de massa planetária. Ora, isto representa cerca de 10 por cento da sua população total.
Um destes objetos, com cerca de cinco vezes a massa de Júpiter, mostra um claro excesso de emissão de radiação em comprimentos de onda mais longos do espectro infravermelho, o que sugere que existe uma estrutura de poeira mais fria em redor desse corpo. Muito provavelmente é o objeto de menor massa conhecido a possuir um disco de gás e poeira à sua volta.
No caso das estrelas, estes discos são chamados “discos protoplanetários”, são um subproduto do processo de formação da estrela e neles podem nascer os planetas convencionais, não-errantes. No caso de um planeta ejetado da sua órbita, é bastante improvável que um eventual disco de material à sua volta tivesse sobrevivido a esse evento dramático.
Isto viria a confirmar que os corpos com massas planetárias se podem formar pelo mesmo processo que as estrelas, e talvez até desenvolver o seu próprio sistema de luas, como um mini-sistema planetário, de que temos o exemplo de Júpiter no Sistema Solar.
Um outro ponto interessante que destacamos nesta investigação é o facto de não termos encontrado nenhum objeto com menos de cinco vezes a massa de Júpiter, apesar de as observações com a sensibilidade do telescópio James Webb terem permitido detetar planetas errantes com massa equivalente à de Júpiter no enxame de estrelas de NGC 1333 se eles de facto aí existissem. Isto pode sugerir que as ejeções de corpos provenientes de sistemas planetários não são tão fáceis nem comuns quanto se pensava.
Em teoria, esperava-se que este mecanismo também libertasse mais facilmente objetos de pequena massa, o que resultaria num maior número destes para massas progressivamente menores. Por outro lado, se tivessem sido todos produzidos exclusivamente pelo processo de formação de estrelas, seria de esperar que houvesse cada vez menos com massas mais pequenas.
Portanto, a ausência ou raridade de objetos com menos de cinco vezes a massa de Júpiter pode indicar que estamos perto de estabelecer o limite mínimo de massa dos corpos que se formam como uma estrela. Este limite é fundamental para aperfeiçoarmos o nosso entendimento de como as estrelas se formam. Se existirem planetas errantes neste enxame de estrelas que se tenham formado em órbita de uma estrela, aparentemente não serão em número significativo.
Estes primeiros resultados, embora interessantes, não fornecem ainda uma resposta definitiva sobre a formação dos planetas errantes. Nos próximos anos será necessário consolidá-los e combiná-los com novas observações a realizar com o telescópio espacial James Webb noutras regiões de formação de estrelas, idealmente mais densas, onde seja mais provável a ejeção de planetas das suas órbitas por interações gravitacionais.
Além disso, o progresso nas observações deverá ser complementado com a exploração da teoria por meio de simulações numéricas por computador. Estas irão ajudar-nos a interpretar essas observações. Somente assim, com uma abordagem multifacetada, poderemos elucidar a verdadeira natureza e origem destes enigmáticos mundos à deriva.
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Notas
- Koraljka Mužić é investigadora no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e professora convidada na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. É doutorada em Astrofísica pela Universidade de Colónia, na Alemanha, e já trabalhou como astrónoma em três continentes.