Portugal já está no ESPRESSO para outras Terras

Conceção artística de um planeta semelhante à Terra.

Conceção artística de um planeta semelhante à Terra. Esta imagem pretende ilustrar um planeta com mais de três vezes a massa da Terra em órbita de uma estrela semelhante ao Sol. Encontra-se a uma distância da estrela que lhe poderá permitir manter água no estado líquido. Créditos: ESO/M. Kornmesser/Nick Risinger (skysurvey.org)

Artigo em parceria com a National Geographic Portugal

“Equipa portuguesa descobre outra ʻTerraʼ e encontra indícios de existência de vida”. Este título parece tirado de um livro de ficção científica, mas não se surpreenda se lhe disser que não estamos assim tão longe de o tornar realidade.

Por Nuno C. Santos1

Como podemos descobrir um planeta que está tão longe, fora do Sistema Solar, a orbitar uma outra estrela? E como podemos saber se é parecido com a Terra? Com que espécie de balança podemos, por exemplo, medir a massa de um astro que é apenas um grão de areia em órbita de uma estrela tão longínqua?

Este parece ser um desafio demasiado ambicioso se nos recordarmos que as estrelas estão a biliões de quilómetros de nós, e que a única coisa que podemos ambicionar receber delas é a sua tímida luz. Mas é para isso que astrofísicos portugueses têm estado a trabalhar, utilizando os melhores instrumentos do mundo.

Uma dança de par

Para abordar este desafio, os cientistas cedo perceberam que, usando as leis da física, seria possível captar os ténues indícios da presença de planetas em órbita de estrelas na nossa vizinhança galáctica. O princípio é relativamente “simples”, mas exige deixar de lado algumas aproximações a que estamos habituados. Ao contrário do que se costuma dizer, a Terra não anda à volta do Sol. “Não? Então… mas o que quer isso dizer?” Calma! A verdade é que qualquer corpo que tenha massa (a Terra, ou o Sol), é capaz de atrair, pela força da gravidade, outros corpos.

Assim, o Sol atrai a Terra, mas a Terra também atrai o Sol. Portanto, o Sol não é indiferente à influência da gravidade da Terra e, tal como a Terra, não está parado, mas ambos giram à volta um do outro.

Se a Terra tivesse uma massa maior, obrigaria o tal centro de massa a deslocar-se para mais longe do centro do Sol, de modo a manter o equilíbrio do conjunto. O Sol iria então oscilar mais e o efeito produzido pela Terra seria mais fácil de detetar.

Para sermos mais precisos, o Sol e a Terra, assim como qualquer outra estrela com um planeta companheiro, orbitam aquilo que os físicos chamam centro de massa, um ponto imaginário de equilíbrio entre o centro da Terra e o centro do Sol. Como o Sol tem muito mais massa do que a Terra, este ponto está muito mais perto do centro do Sol do que do centro da Terra (está na verdade dentro do Sol). Mas na prática, isto significa que o Sol também se move em torno deste ponto.

Um hipotético cientista extraterrestre, num planeta distante, a olhar para o Sol, poderá aperceber-se de que a nossa estrela parece oscilar no espaço. Mesmo sem conseguir ver a Terra, totalmente ofuscada pelo fulgor do Sol, o alienígena poderá afirmar que ela existe!

Movimento da estrela sob o efeito da atração gravitacional do planeta.
Este diagrama pretende evidenciar, de modo exagerado, o movimento da estrela sob o efeito da atração gravitacional do planeta. Ambos rodam em torno de um centro de massa (cruz ao centro), como ponto de equilíbrio do sistema estrela-planeta.
Créditos: IA

Há que notar que a oscilação provocada depende essencialmente de três fatores: da massa do planeta, da massa da estrela, e da separação entre eles. Naturalmente, se a Terra tivesse uma massa maior, obrigaria o tal centro de massa a deslocar-se para mais longe do centro do Sol, de modo a manter o equilíbrio do conjunto. O Sol iria então oscilar mais e o efeito produzido pela Terra seria mais fácil de detetar.

O nosso extraterrestre descobriu assim o planeta Terra. Se conhecer a massa do Sol (algo que pode ser estimado a partir das suas características estelares observadas) e medir o quanto a nossa estrela oscila, poderá estimar também a massa da Terra. Paralelamente, nós podemos fazer o mesmo para procurar outras “Terras” na nossa galáxia.

Um objeto celeste que se aproxime da Terra parece-nos mais “azul” (frequência de luz mais elevada), e outro que se afaste parece-nos mais “vermelho”. A “cor” que observamos dependerá da velocidade com que ele se aproxima ou se afasta de nós.

Se o texto acima tiver sido convincente, uma pergunta que lhe poderá estar agora a passar pela cabeça é “Como é que conseguimos medir o movimento de oscilação numa estrela que, mesmo no maior telescópio, não passa de um pequeno ponto de luz?”

Temos várias formas de o fazer. A mais simples (do ponto de vista tecnológico) é medir a velocidade da estrela. “Velocidade? Mas como é que…?” Vou explicar por partes. A velocidade de um astro pode ser medida usando um princípio simples da Física, um princípio que na verdade tem tanto de estranho como de comum no nosso dia-a-dia.

Quando a luz hesita na cor

Talvez já se tenha apercebido de que quando uma ambulância se aproxima de nós, o som da sua sirene é mais agudo (frequência sonora mais elevada) do que quando se afasta e se torna subitamente mais grave (desvio para uma frequência mais baixa). Algo idêntico ocorre quando passa por nós uma motorizada, ou com os carros nas pistas de Fórmula 1. Talvez não pensemos muito no assunto, mas este fenómeno deve-se à contração e à dilatação das ondas sonoras, que são ondas de pressão no ar.

Um cisne a dar o seu passeio num lago produz ondulações na superfície do lago.
O efeito de alteração na frequência que experienciamos quando uma fonte de som passa por nós ocorre com qualquer outro fenómeno ondulatório. Um cisne a dar o seu passeio num lago produz ondulações na superfície do lago que são mais frequentes (cristas de onda mais juntas) no sentido do seu movimento. Créditos: Zátonyi Sándor, modificado por F l a n k e r (CC BY-SA 3.0)

Mas a luz também são ondas. São ondas “eletromagnéticas”, ou seja, oscilações do campo eletromagnético. As cores da luz visível são de facto interpretações do nosso cérebro de diferentes gamas de frequência das ondas eletromagnéticas. Por isso, o mesmo fenómeno de desvio de frequência que “ouvimos” nas ondas sonoras também pode ser “visto” nas ondas de luz.

Por exemplo, um objeto celeste que se aproxime da Terra parece-nos mais “azul” (frequência de luz mais elevada), e outro que se afaste parece-nos mais “vermelho”. A “cor” que observamos dependerá da velocidade com que ele se aproxima ou se afasta de nós. Quanto maior for essa velocidade, maior o desvio da sua “cor natural” para o lado azul ou o lado vermelho do espectro eletromagnético. Pela “cor” observada podemos assim medir a velocidade a que esse astro se move.

O nosso olho não é capaz de detetar qualquer variação na cor de uma estrela causada pelo seu movimento em torno de um planeta. Na realidade, as cores que vemos nos astros estão sobretudo relacionadas com a sua temperatura.

Ora, como explicado acima, uma estrela que tenha um planeta a orbitá-la vai oscilar no espaço, aproximando-se e afastando-se de nós de forma sucessiva à medida que percorre a sua órbita em torno do centro de massa do conjunto estrela-planeta. Assim, vista por nós, tal como o Sol pelo nosso alienígena, a estrela vai parecer variar a sua cor, ficando ora mais azul, ora mais vermelha. O seu percurso e velocidade vão depender da massa do planeta, e tal como o astrofísico extraterrestre fez para a Terra, podemos usar uma medida da variação de cor para tentar conhecer a massa do planeta.

Todas as cores do Sol – o espectro, ou decomposição da sua luz nas várias cores.
Todas as cores do Sol – o espectro, ou decomposição da sua luz nas várias cores, da nossa estrela, depois de passar por um espectrógrafo. Créditos: Nigel Sharp (NSF), FTS, NSO, KPNO, AURA, NSF

Sinais no arco-íris: apresentamos o espectrógrafo

É importante clarificar que, para os valores de velocidade de que estamos a falar, o efeito que queremos observar é muitíssimo subtil. O nosso olho não é capaz de detetar qualquer variação na cor de uma estrela causada pelo seu movimento em torno de um planeta. Na realidade, as cores que vemos nos astros estão sobretudo relacionadas com a sua temperatura. Mas isso é assunto para outra conversa.

Como é que podemos então medir essa ínfima variação na cor de modo a saber a velocidade com que a estrela se aproxima ou se afasta de nós? Para isso os astrofísicos utilizam um instrumento ótico que permite fazer um arco-íris a partir da luz dos astros. Chama-se espectrógrafo e decompõe a luz dos astros nas suas várias cores, criando um espectro que é específico desse astro.

O espetrógrafo mais simples é um prisma. Mais simples ainda são as gotículas da água na nossa atmosfera que formam os belos arco-íris que vemos quando chove e faz sol ao mesmo tempo (já agora: alguém já encontrou o pote de ouro?).

A rede de difração do espectrógrafo ESPRESSO
A rede de difração do espectrógrafo ESPRESSO é o que, à semelhança de um prisma, permite decompor a luz nas suas várias cores. Vemo-la aqui quando estava a ser testada na sede do ESO, em Munique, Alemanha. Créditos: ESO/M. Zamani

Naturalmente, do princípio físico até à descoberta de uma Terra a orbitar outro Sol vai um grande passo. Exige sermos capazes de medir a velocidade de uma estrela com um erro menor do que dez centímetros por segundo, ou 360 metros por hora. Isto é medir a velocidade a que se desloca uma tartaruga, mas num astro que está a biliões de quilómetros de nós. Já alguma vez imaginou que conseguiríamos algo assim?

Foi no entanto este método que levou à descoberta, em 1995, do primeiro planeta a orbitar outra estrela semelhante ao Sol, uma descoberta que deu aos astrofísicos Michel Mayor e Didier Queloz parte do prémio Nobel da Física de 2019. Na altura, a tecnologia não permitia ainda chegar à precisão necessária para descobrir outras Terras, mas deu à “luz” um planeta gigante e abriu caminho para toda uma nova área da astrofísica: a procura e estudo de exoplanetas.

Portugueses na procura de outras Terras

Voltemos à “notícia” de abertura deste artigo. Como é que os astrofísicos portugueses vão conseguir descobrir uma outra Terra a orbitar outro Sol? Ao longo dos últimos anos, a equipa do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) participou no desenvolvimento de um espectrógrafo inovador, capaz de medir variações de velocidade tão pequenas que temos, pela primeira vez, a “rede” capaz de “apanhar” planetas pequeninos como a nossa Terra a orbitar estrelas distantes.

Uma outra Terra, para ser mesmo “outra Terra”, terá também de ter vida, e para encontrar evidências de que existe vida temos de ir mais além.

Com o nome ESPRESSO, esta obra de engenharia está instalada no telescópio Very Large Telescope (VLT), do Observatório Europeu do Sul (ESO), no deserto do Atacama, um dos mais secos do mundo, no Chile. O espectrógrafo ESPRESSO permite recolher a luz de estrelas distantes e analisar o tal desvio de cor. Com isso, os astrofísicos conseguem conhecer a velocidade da estrela com a mais pequena margem de erro alguma vez obtida, e perceber se existem planetas tão pequenos como a Terra a orbitá-la.

Após quase dez anos a desenhar e a construir este instrumento, em setembro de 2018 começámos as observações. Os primeiros resultados trazidos à luz pelo ESPRESSO estão agora a ser divulgados e deixam-nos a todos boquiabertos com o que o Universo nos tem para contar.

ESPRESSO, o espectrógrafo da nova geração
Todo o sistema do espectrógrafo ESPRESSO quando estava a ser testado na sede do ESO, em Munique, Alemanha, antes de ser enviado para o Chile e instalado no Very Large Telescope, no Monte Paranal. Créditos: University of Geneva

No início de 2020, o ESPRESSO permitiu confirmar, de forma inequívoca, que a estrela mais próxima do Sol, Proxima Centauri, uma pequena estrela vermelha situada a pouco mais de quatro anos-luz, tem um planeta à sua volta. Mais importante, não se trata de um planeta qualquer: é um pequeno planeta rochoso, talvez não muito diferente da Terra.

Antes disso, o ESPRESSO tinha olhado para a atmosfera de um outro planeta, um gigante semelhante a Júpiter (com mais de 300 vezes a massa da Terra) e que orbita uma estrela ligeiramente mais quente do que o Sol. A particularidade deste planeta é que está muito próximo da sua estrela. Tão próximo que a sua temperatura excede os 2000 graus Celsius.

Os dados obtidos com o ESPRESSO permitiram descobrir que a atmosfera deste planeta é tão quente que nela chove ferro! Certamente um mau sítio para planear umas férias, mas um excelente espetáculo se a ele pudéssemos assistir devidamente protegidos.

O HIRES, a partir de 2027,  será capaz de detetar a presença de elementos químicos, alguns deles potencialmente indicadores da existência de vida, na atmosfera de uma outra Terra.

Muitos outros resultados foram já anunciados, e muitos mais aguardam confirmação, à medida que vamos recolhendo novos dados. Em breve teremos certamente mais novidades… ou talvez agora!? Ainda que não esteja anunciado, os astrofísicos do IA estão a ultimar o anúncio da descoberta de um sistema de vários planetas, um dos quais tem apenas metade da massa da Terra. É o planeta de menor massa que foi descoberto e “pesado” até hoje!

Orbita uma estrela distante, e infelizmente está demasiado próximo dela (e por isso é demasiado quente) para que possamos imaginar que a vida se tenha nele desenvolvido. Mas a descoberta não deixa de ser mais uma forte evidência de que existem muitos outros planetas pequenos e rochosos como a Terra por esse Universo fora. Temos de os descobrir!

Uma resposta entre as estrelas

Pode agora estar a perguntar-se, para quando então o título da notícia fictícia que apresentei no início deste artigo? Os dados recolhidos com o ESPRESSO vão certamente permitir descobrir ou estudar muitos planetas a orbitar outras estrelas. No entanto, uma outra Terra, para ser mesmo “outra Terra”, terá também de ter vida, e para encontrar evidências de que existe vida temos de ir mais além. É justamente para isso que os astrofísicos nacionais se estão já a preparar, antecipando o futuro em colaborações internacionais científicas e de engenharia.

Participamos ativamente em dois grandes projetos internacionais: a missão PLATO, da Agência Espacial Europeia (ESA), e um outro espectrógrafo, o instrumento HIRES para o futuro telescópio Extremely Large Telescope (ELT), também do ESO. Este será um telescópio gigante, com um espelho principal de 39 metros de diâmetro, o que corresponde a uma área de quase dois quilómetros quadrados, o maior do mundo!

Interpretação artística da atmosfera do exoplaneta WASP-76b.
Interpretação artística da atmosfera do exoplaneta WASP-76b. Do lado esquerdo da imagem vemos a fronteira do final da tarde do exoplaneta, onde se dá a transição do dia para a noite.
Crédito: ESO/M. Kornmesser

A missão PLATO está planeada para ser lançada em 2026 e tem como seu objetivo precisamente detetar planetas parecidos com a Terra a orbitar outras estrelas. Vai para isso utilizar outro método, o método dos trânsitos planetários, que permite descobrir planetas e estimar o seu tamanho. Os dados do PLATO serão depois complementados com observações dos mesmos alvos por instrumentos no solo, como o ESPRESSO, que vão permitir derivar a massa e, a partir do tamanho, calcular a densidade destes mundos: serão rochosos ou gasosos?

Mas falta o passo seguinte: estudar as suas atmosferas para procurar nelas sinais de vida. É isso que o espectrógrafo HIRES, entre muitas outras coisas, se propõe fazer. Potenciado pela capacidade ótica sem precedentes do telescópio ELT, o HIRES será, a partir de 2027, uma versão do ESPRESSO “com dopping”, capaz de detetar a presença de elementos químicos, alguns deles potencialmente indicadores da existência de vida, na atmosfera de uma outra Terra a orbitar outro Sol distante.

Estamos por isso muito próximos de responder a uma das grandes perguntas de sempre: estaremos sós no Universo? Naturalmente, ninguém sabe quando vamos ser capazes de responder cabalmente a essa pergunta, nem qual das muitas estrelas que vemos no céu à noite será a estrela que tem a resposta. No entanto, sabemos que estamos muito próximo de ter a capacidade tecnológica e o conhecimento científico que nos vão permitir chegar à resposta. Vamos então apoiar e confiar na ciência nacional, e aguardar pacientemente o momento de celebrar a boa nova.

Disponível sob licença de reutilização Creative Commons cc-by-sa


  1. Nuno C. Santos, é investigador no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e Professor Auxiliar no Departamento de Física e Astronomia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP). Em 2004, foi o autor principal do artigo onde se publicou a descoberta do primeiro planeta potencialmente rochoso a orbitar outra estrela. É o investigador responsável em Portugal pelos projetos ESPRESSO e HIRES@ELT (ESO), e pelas missões espaciais CHEOPS e PLATO (ESA).