Mais de meio ano a perseguir uma onda com 4000 km de extensão

Nuvens produzidas por uma onda de gravidade na atmosfera da Terra. Ondas de gravidade podem produzir nuvens, ao comprimirem e expandirem o ar. As nuvens são perpendiculares à direção da onda. A descontinuidade observada nas nuvens em Vénus pode ter uma causa semelhante.
Fonte: blog.weatherflow.com

Vénus foi a “estrela da manhã” durante a primeira metade do ano de 2022 e o alvo de pequenos telescópios um pouco por todo o mundo. Quais surfistas à distância, os astrónomos andaram “à caça” de uma onda especial, uma onda atmosférica.

Revelada em 2020 com a contribuição do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, é uma onda na atmosfera de Vénus a 50 quilómetros de altitude e de dimensão planetária. Tem cerca de 4000 quilómetros de extensão e desloca-se à velocidade média de uns 300 quilómetros por hora. Assim completa uma volta ao globo sólido do planeta em pouco mais de cinco dias. 

Esta onda é detetável pela descontinuidade que produz na luz refletida (albedo) e na transparência das nuvens (que em Vénus são constituídas essencialmente por ácido sulfúrico). Durante quase oito meses, do final de 2021 até julho de 2022, num trabalho de equipa que envolveu astrónomos amadores e foi liderado por Javier Peralta, colaborador do IA e investigador da Universidade de Sevilha, Espanha, realizou-se a primeira campanha de observação contínua e de longa duração desta misteriosa onda atmosférica. 

Evolução do padrão de descontinuidade observado no topo das nuvens de Vénus com a câmara de ultravioletas da sonda Akatsuki
Evolução do padrão de descontinuidade observado no topo das nuvens de Vénus com a câmara de ultravioletas da sonda Akatsuki, da agência espacial japonesa JAXA, em órbita de Vénus. A sequência à esquerda permite acompanhar a evolução da forma, enquanto a da direita exibe a propagação, e registam imagens obtidas a cada duas horas entre os dias 13 e 14 de junho de 2022.
Créditos: JAXA, Javier Peralta

“A minha primeira visualização desta descontinuidade nas nuvens em Vénus ocorreu a 16 de Outubro de 2020 numa monitorização de rotina e sem ter prévia noção da importância do fenómeno. Comecei a interessar-me mais pela observação da atmosfera venusiana desde essa altura.”
António Cidadão

“Esta proeza foi possível graças à colaboração de astrónomos amadores de diversos países, que foram os grandes protagonistas da campanha mundial de observações”, comentou Javier Peralta no comunicado de imprensa da Universidade de Sevilha. Com pequenos telescópios de diâmetros da ordem dos 20 a 35 centímetros, astrónomos amadores de Portugal, Itália, África do Sul, Austrália, Estónia e Taiwan forneceram imagens na luz visível e na zona do infravermelho próximo da luz visível. Esta gama do espectro eletromagnético permite sondar o nível de nuvens intermédio, no lado diurno, entre 50 e 56 quilómetros acima da superfície, onde esta onda atmosférica é mais evidente.

As observações foram publicadas num artigo da revista científica Astronomy & Astrophysics, de que são primeiros autores Javier Peralta e o português António Cidadão, membro da Associação Portuguesa de Astrónomos Amadores (APAA).

Imagens que evidenciam a descontinuidade no coberto de nuvens de Vénus durante o ano de 2022.
Imagens que evidenciam a descontinuidade no coberto de nuvens de Vénus durante o ano de 2022. Nestas imagens veem-se as nuvens intermédias no lado diurno e foram obtidas por astrónomos amadores utilizando filtros para a gama de comprimentos de ondas entre os 700 e os 900 nanómetros, ou seja, já na região do infravermelho.

As imagens de 4 de fevereiro (a primeira) e de 14 de junho (terceira imagem da segunda fila) foram obtidas, respetivamente, pela câmara de infravermelhos e pela câmara de ultravioletas, ambas da sonda Akatsuki, da agência espacial japonesa JAXA, em órbita de Vénus. Estas duas imagens mostram, respetivamente, as nuvens baixas e o topo das nuvens.

Créditos: Javier Peralta et al., 2023

Nas imagens obtidas pelos astrónomos amadores foram sinalizadas 13 ocorrências desta disrupção atmosférica. Diversamente da maioria das infraestruturas profissionais, os astrónomos amadores podem realizar observações de longa duração. Foi o caso do português António Cidadão, professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, e que desde 1999 que contribui para observações planetárias. 

Telescópio de controlo remoto de 365mm de diâmetro que António Cidadão utilizou nestas observações,
Telescópio de controlo remoto de 365mm de diâmetro que António Cidadão utilizou nestas observações, equipado com câmaras com sensibilidade alargada ao comprimento de onda de luz de 1000 nanómetros (infravermelho próximo), e filtros adequados à observação da atmosfera de planetas gasosos.
Créditos: António Cidadão.

Nesta campanha, Cidadão destacou-se por ter obtido um total de 109 dias de observação contínua de Vénus, utilizando o seu telescópio de 356 milímetros de diâmetro instalado em Carcavelos, concelho de Oeiras. 

A origem desta onda é ainda desconhecida, mas sabe-se que é recorrente e de longa duração. Não se conhece ainda o seu comportamento ao longo do tempo, nem a regularidade com que surge e se dissipa. Outras ondas atmosféricas foram já descobertas em Vénus, mas sempre acima dos 65 quilómetros de altitude.

É provável que seja uma onda do género das que são causadas pela deslocação de um meio (líquido como o mar, ou gasoso como a atmosfera) em relação à sua posição de estabilidade relativa à força de gravidade do planeta. Por isso se chamam ondas de gravidade (não confundir com ondas gravitacionais).

As ondas de gravidade, à semelhança da água num alguidar que foi agitado, propagam-se à medida que o meio tenta restaurar a sua posição de equilíbrio.

Os investigadores supõem que esta onda nas camadas mais profundas – onde o efeito de estufa provocado pela colossal concentração de dióxido de carbono mantém a superfície a 465 graus Celsius – possa estar a transportar energia desde uns 20 quilómetros até maiores altitudes e a alimentar assim as velocidades ciclónicas permanentes dos ventos no topo das nuvens de Vénus.

De facto, a equipa testemunhou que, nos dias 13 e 14 de junho de 2022, a descontinuidade se poderá ter manifestado também nessa região, mesmo que por apenas umas 21 horas, antes de se dissipar. 

“Quando uma onda atmosférica encontra uma região que se move à mesma velocidade, ela dissipa-se”, explica Javier Peralta. “Esta onda é mais lenta do que os intensos ventos no topo das nuvens, por isso nunca a haviamos observado aí. Confirmámos que, em certos momentos durante a campanha de observação, os ventos ao nível das nuvens altas abrandaram e mostraram velocidades inferiores à propagação desta descontinuidade, indiciando que a onda poderá não ter sido retida na sua propagação para cima.”

O topo do nível superior das nuvens de Vénus, a 70 quilómetros de altitude, pode ser observado em imagens na luz ultravioleta, como as obtidas com a sonda espacial Akatsuki, da Agência Espacial Japonesa (JAXA), em órbita de Vénus. Combinadas com imagens no infravermelho captadas por astrónomos amadores, permitiram à equipa observar dois níveis das nuvens de Vénus ao mesmo tempo e obter informação crítica sobre a propagação vertical da onda.

Nuvens intermédias em Vénus
Nuvens intermédias em Vénus, entre 11 e 16 de outubro de 2020, em imagens obtidas por Emmanuel Kardasis e António Cidadão.

Créditos: Emmanuel Kardasis e António Cidadão.

Outra das formas com que António Cidadão contribuiu para este trabalho foi nos testes que fez a filtros comerciais para a gama do infravermelho. Foram estes testes que lhe permitiram encontrar o filtro que garantiu as imagens das nuvens intermédias de Vénus com o melhor contraste. 

“Utilizo filtros adequados à observação da atmosfera dos planetas gasosos, e mais recentemente para Vénus, como filtros ultravioleta e Sloan z’-s’”, explica. Este último verificou-se ser muito eficaz na visualização das camadas intermédias das nuvens desse planeta.

Segundo Peralta, a equipa planeia simular esta descontinuidade com modelos numéricos de Vénus e, por comparação com estas observações de longa duração, delimitar certas condições atmosféricas do planeta.

Pedro Machado, do IA e da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa), diz que o grupo de sistemas planetários do IA, que encontrou esta descontinuidade também em observações que fez com o Telescópio Nacional Galileo (TNG), nas Ilhas Canárias, quer vir a contribuir igualmente para o entendimento da sua génese e manutenção.