Descoberta a primeira disrupção gigante nas nuvens baixas de Vénus e que dura há décadas

Disrupção nas nuvens de Vénus (detalhe)

Exemplo de ondulações atrás da descontinuidade no lado noturno a 15 de abril de 2016. Créditos: Javier Peralta/JAXA-Planet C team

Uma clivagem de escala planetária nas nuvens de Vénus tem periodicamente fustigado as zonas profundas da espessa atmosfera há pelo menos 35 anos, afirma um estudo com a participação do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA).

Nos céus carregados de Vénus, constituídos sobretudo por dióxido de carbono e nuvens de ácido sulfúrico, uma disrupção atmosférica gigante, ainda desconhecida em qualquer outra parte do Sistema Solar, desloca-se veloz a 50 quilómetros de altitude e passou despercebida durante pelo menos 35 anos. A sua descoberta é relatada num estudo1 agora publicado na revista científica Geophysical Research Letters e teve a contribuição de Pedro Machado, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA2) e da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa).

Se isto acontecesse na Terra, seria como uma superfície frontal mas à escala planetária, o que é algo inacreditável”
Pedro Machado

Esta descontinuidade nas nuvens, de proporções planetárias, pode estender-se por 7500 quilómetros, cruzando o equador, de 30º de latitude norte a 40º sul. Ocorre ao nível baixo das nuvens, como uma parede entre 47,5 e 56,5 quilómetros de altitude, e desliza periodicamente em torno do globo sólido em cinco dias, a cerca de 328 quilómetros por hora.

O estudo foi liderado pela agência espacial japonesa JAXA, que primeiro identificou o que parecia uma onda atmosférica, mas de proporções planetárias. Os indícios encontravam-se em imagens de grande detalhe do lado noturno do planeta obtidas no infravermelho pela sonda Akatsuki, da JAXA, em órbita de Vénus, e que sondou as camadas intermédias e baixas da atmosfera.

Disrupção nas nuvens de Vénus-Akatsuki
Animação mostrando as nuvens baixas de Vénus (a cerca de 50 km de altitude) no infravermelho. Nuvens claras são mais transparentes à radiação térmica emitida do solo do que as nuvens escuras.
Ficheiro animado disponível aqui
Créditos: Javier Peralta/JAXA-Planet C team

“Se isto acontecesse na Terra, seria como uma superfície frontal, mas à escala planetária, o que é algo inacreditável”, diz Pedro Machado. “Como parte da campanha de validação, estivemos a rever as imagens das minhas observações no infravermelho em 2012 com o Telescópio Nacional Galileo (TNG), nas Ilhas Canárias, e estava lá a descontinuidade tal e qual.”

O IA contribuiu não apenas com trabalho anterior, no âmbito do seu programa de pesquisa dos ventos de Vénus, mas também com novas observações com o telescópio de infravermelhos IRTF, da NASA, no Havai, coordenadas com observações simultâneas a partir do espaço com a sonda Akatsuki.

Outros padrões gigantes têm sido observados nas nuvens da atmosfera de Vénus, como a onda Y3, ou a onda estacionária em forma de arco com a extensão de 10 000 quilómetros, ambas nas nuvens altas, mas esta é a primeira candidata a onda planetária descoberta a baixas altitudes.

Esta região profunda da atmosfera é responsável pelo efeito de estufa descontrolado que retêm o calor e mantém a superfície a 465 graus Celsius (o suficiente para derreter chumbo). Ondas de escala planetária como esta poderão ajudar a estabelecer uma ligação entre a superfície e a dinâmica da atmosfera de Vénus como um todo, a qual, em certa medida, é ainda um mistério.

“Uma vez que esta disrupção não é observada em imagens no ultravioleta que sondam o topo das nuvens, a 70 quilómetros de altitude, torna-se de importância crítica confirmar a sua natureza ondulatória”, diz Javier Peralta, que liderou este estudo. “Assim teríamos finalmente encontrado uma onda a transportar momento e energia da atmosfera profunda e a dissipar-se antes de chegar ao topo das nuvens. Estaria assim a depositar momento precisamente ao nível onde observamos os ventos mais rápidos da designada super-rotação atmosférica4 de Vénus, cujos mecanismos são um mistério de longa data.”

Disrupção nas nuvens de Vénus - Akatsuki
Padrões de disrupção das nuvens vistos em imagens no infravermelho obtidas pela sonda da agência espacial japonesa JAXA, a Akatsuki, em 2016.
Créditos: Javier Peralta/JAXA-Planet C team

No entanto, o mecanismo que terá iniciado esta disrupção e a mantém, com ciclos de intensidade variável, é ainda desconhecido, apesar de simulações por computador a tentarem mimetizar. Segundo os investigadores, este é um fenómeno meteorológico novo, ainda não visto noutros planetas, e por isso é para já difícil fornecer uma interpretação física convincente.

Será alvo de futura investigação, mas os autores sugerem que esta disrupção seja a manifestação física de uma onda atmosférica de tipo Kelvin, a propagar-se retida ao nível do equador. Ondas Kelvin são uma classe de ondas de gravidade5 atmosféricas que partilham com esta disrupção características importantes. Por exemplo, propagam-se na mesma direção que os ventos em super-rotação e sem nenhum efeito aparente sobre os ventos que sopram do equador na direção dos polos, os ventos meridionais.

Ondas Kelvin podem interagir com outro tipo de ondas atmosféricas, como as que naturalmente ocorrem como resultado da rotação do planeta, as ondas Rossby. Estas podem provocar o transporte de energia da super-rotação para o equador.

Revisitando imagens tão antigas como de 1983, os investigadores puderam confirmar a continuidade destas características. Para Pedro Machado, isto passou despercebido durante tanto tempo porque “precisávamos de ter acesso a uma grande coleção de imagens, espalhadas por diferentes telescópios e obtidas ao longo das últimas décadas.”

Notas

  1. O artigo “A Long-Lived Sharp Disruption on the Lower Clouds of Venus”, por Javier Peralta et al., foi publicado a 16 de junho de 2020 na revista científica Geophysical Research Letters, Volume 47, número 11 (DOI: https://doi.org/10.1029/2020GL087221).
  2. O Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) é a instituição de referência na área em Portugal, integrando investigadores da Universidade de Lisboa e da Universidade do Porto, e englobando a maioria da produção científica nacional na área. Foi avaliado como “Excelente” na última avaliação de unidades de investigação e desenvolvimento organizada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). A atividade do IA é financiada por fundos nacionais e internacionais, incluindo pela FCT/MCES (UID/FIS/04434/2019). 
  3. A onda Y, assim designada pela sua forma, é uma estrutura escura enorme, que cobre quase todo o disco do planeta. Situada na parte superior do denso manto de nuvens de Vénus, apenas surge quando observada no ultravioleta. A sua origem foi durante décadas um mistério, até ser explicada por uma equipa internacional em que participaram investigadores do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço.
  4. O planeta Vénus roda lentamente (em sentido contrário ao da Terra e da maioria dos planetas do Sistema Solar), levando 243 dias terrestres a completar um dia venusiano. No entanto, a sua atmosfera roda 60 vezes mais rápido. A super-rotação da atmosfera de Vénus consiste no facto de os ventos paralelos ao equador, ou ventos zonais, serem responsáveis por a atmosfera completar uma volta ao planeta em apenas pouco mais de quatro dias terrestres. Como consequência, a velocidade normal do vento em relação à superfície ronda os 360 quilómetros por hora.
  5. Ondas de gravidade (não confundir com ondas gravitacionais) são flutuações num meio fluido. São causadas pela deslocação do meio em relação à sua posição de estabilidade relativa à força de gravidade. Estas ondas propagam-se à medida que o meio tenta restaurar a sua posição de equilíbrio. Ondas marítimas, tanto causadas pelo vento como por correntes marítimas que passam sobre fundos marinhos de baixa profundidade e de relevo acidentado, são exemplos de ondas de gravidade.

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