À procura dos anéis que poderão destronar Saturno

Imagem de Saturno e dos seus principais anéis, obtida com a sonda Cassini em 2016.

Imagem de Saturno e dos seus principais anéis, obtida com a sonda Cassini em 2016.
Créditos: NASA/JPL-Caltech/Space Science Institute

O magnífico “Senhor dos Anéis” não está sozinho. Encontrados em locais e tamanhos mais humildes no Sistema Solar, os anéis poderão existir também em volta de mundos que orbitam outras estrelas. Mas como o poderemos saber?

Artigo de Babatunde Akinsanmi1 em parceria com a National Geographic Portugal

Anéis no Sistema Solar

Quando Galileu Galilei apontou o seu pequeno telescópio para Saturno em 1610, tornou-se na primeira pessoa a ver o que ele mais tarde, incorretamente, descreveu como duas pegas. Foi apenas em 1655, quando Christiaan Huygens, nos Países Baixos, observou com um telescópio maior, que as pegas foram interpretadas como sendo um anel fino e plano em volta do planeta, mas separado da sua superfície. Os anéis levantaram desde então questões interessantes e difíceis para os cientistas: Como e quando se formaram? Existem em volta de outros planetas? O que nos dizem sobre o seu planeta-anfitrião?

A curiosidade científica sobre os anéis conduziu a várias observações. Estas revelaram que Saturno tem de facto um sistema de anéis, com muitos anéis separados por intervalos, e que são feitos de inúmeras partículas de gelo e rocha de tamanhos diversos. As sondas Voyager 1 e 2, da NASA, lançadas em 1977, descobriram depois a presença de anéis em torno dos outros planetas gigantes – Júpiter, Neptuno e Úrano – embora não tão extensos como os de Saturno.

Estudos recentes sugerem que Marte poderá um dia vir a ter anéis, já que uma das suas luas, Fobos, está a migrar para uma órbita cada vez mais interior e irá provavelmente fragmentar-se.

O aspeto interessante de que se deu conta a partir das observações dos anéis é que as propriedades destes variam de planeta para planeta. Saturno tem anéis densos que são brilhantes devido a partículas constituídas sobretudo por gelo de água, que é refletor, enquanto os anéis em volta de Úrano e Neptuno são finos e escuros e separados por amplas lacunas, e os de Júpiter são feitos de poeiras e são ténues.

Dafnis, lua de Saturno, em órbita ao longo de um intervalo na parte exterior dos anéis deste planeta. Imagem obtida pela sonda Cassini em 2017.
Dafnis, lua de Saturno, em órbita ao longo de um intervalo na parte exterior dos anéis deste planeta. Imagem obtida pela sonda Cassini em 2017.
Créditos: NASA/JPL-Caltech/Space Science Institute

A origem dos anéis é ainda um tema em debate. Poderão ter-se formado ao mesmo tempo que o seu planeta-anfitrião, ou como resultado de eventos disruptivos mais tardios, tais como a desintegração de luas, ou asteroides, devida a forças de maré, ou até serem material ejetado por luas, como parece ser o caso de anéis mais exteriores de Júpiter e Saturno.

Num cenário de desintegração, um corpo mais pequeno a orbitar um planeta poderá migrar para mais perto deste, puxado pela interação gravitacional com o planeta. À medida que se aproxima, alcança uma distância ao planeta referida como o limite de Roche. Para lá deste limiar, o rápido aumento na intensidade da atração gravitacional fará com que um pequeno corpo, abaixo de uma certa densidade e com fraca gravidade própria, se desfaça sob a força de maré do planeta.

À medida que as partículas do corpo desfeito começam a orbitar o planeta, elas espalham-se viscosamente formando anéis. Este cenário ocorreu em 1994 quando o cometa Shoemaker-Levy 9 se desagregou pelo efeito da atração gravitacional de Júpiter. Neste caso, porém, os fragmentos não formaram anéis, mas colidiram com Júpiter.

Na última década, aumentou o número de objetos no Sistema Solar que se sabe terem anéis quando foram observados também em volta dos corpos mais pequenos.

Estudos recentes sugerem que Marte poderá um dia vir a ter anéis, já que uma das suas luas, Fobos, está a migrar para uma órbita cada vez mais interior e irá provavelmente fragmentar-se. Por outro lado, partículas com massa suficiente e fora do limite de Roche (mais afastadas do planeta) poderão unir-se outra vez e formar luas. Por isso, há interações dinâmicas muito próximas entre luas e anéis, talvez mesmo em ciclos, com materiais a serem permutados entre ambos e por vezes uns convertendo-se nos outros.

Evidências de luas (ou pequenas luas) a formarem-se entre os anéis, ou a sustentar anéis, foram encontradas em todos os planetas gigantes do Sistema Solar. Por exemplo, lacunas observadas entre anéis estão, em alguns casos, associadas à presença de uma pequena lua que segue uma órbita ao longo desse hiato. Essa lua está a acrescer material dos próprios anéis, como é o caso das pequenas luas Pan e Dafnis, dentro do anel A de Saturno. Como tal, o estudo de anéis pode também ajudar a compreender como as luas se formaram e evoluíram.

Ainda com estas persistentes perguntas sem resposta, foram detetados anéis outra vez, mas em torno de outros corpos planetários, muito diferentes dos planetas gigantes.

Nunca demasiado modesto para usar um anel

Na última década, aumentou o número de objetos no Sistema Solar que se sabe terem anéis quando foram observados também em volta dos corpos mais pequenos Chariklo, Chiron e Haumea. Os dois primeiros pertencem a uma classe de objetos chamada Centauros, que são semelhantes aos asteroides e cometas mas têm órbitas instáveis que cruzam as dos planetas gigantes. Quanto a Haumea, é um dos maiores planetas anões.

O asteroide remoto Chariklo encontra-se rodeado por dois anéis densos e estreitos.
O asteroide remoto Chariklo encontra-se rodeado por dois anéis densos e estreitos. A origem dos anéis permanece um mistério, mas pensa-se que podem ser o resultado de uma colisão que criou um disco de fragmentos.
Créditos: ESO/L. Calçada/M. Kornmesser/Nick Risinger (skysurvey.org)

Os anéis em volta destes corpos menores estão separados por lacunas e têm limites bem definidos, os quais se poderão dever a interações com satélites embebidos nos anéis. Parecem ter uma composição semelhante à dos anéis dos planetas gigantes, ou seja, feitos de poeira e gelo de água, mas pensa-se que terão tido diferentes cenários de formação. Poderão ter-se formado a partir de materiais ejetados da superfície do pequeno corpo anfitrião a seguir a um impacto, ou na sequência de uma disrupção parcial causada por um encontro orbital muito próximo com um dos planetas gigantes. Poderão também ter tido origem em poeira expelida pelo corpo aquecido à medida que ele migrava para o interior do Sistema Solar e para mais perto do Sol.

A deteção de anéis em volta destes corpos foi desconcertante, pois pensava-se que eles seriam uma propriedade exclusiva dos planetas gigantes. Estas descobertas motivam hoje a procura por ainda mais objetos com anéis, já que os critérios para se fazer rodear de anéis poderão ser de facto muito amplos, permitindo uma variedade de casos possíveis.

 Com a ubiquidade e diversidade de anéis entre os corpos do Sistema Solar, torna-se lógico esperar que existam também em volta de planetas que orbitam outras estrelas, os exoplanetas. Atualmente, mais de 4000 mundos foram descobertos fora do Sistema Solar, mas ainda está por detetar o primeiro que albergue anéis.

Um planeta a orbitar outra estrela é algo quase sempre além do alcance dos telescópios que temos hoje. É um grão de pó submerso num dilúvio de luz despejado pela sua estrela anfitriã. Ainda assim, os astrónomos desenvolveram métodos engenhosos para os descobrir. Um dos mais bem sucedidos métodos para detetar planetas extrasolares, ou exoplanetas, é o método dos trânsitos.

Representação de um planeta a transitar diante da sua estrela anfitriã.
Representação de um planeta a transitar diante da sua estrela anfitriã. A curva de luz mostra a diminuição no brilho aparente da estrela à medida que o planeta bloqueia uma fração da sua luz durante o trânsito.

Créditos: ESA / IA (adaptação)

Um trânsito ocorre quando um planeta passa em frente da sua estrela a partir do nosso ponto de vista na Terra (ou de um telescópio no espaço). À medida que o planeta transita, bloqueia uma fração da luz da estrela que chega até nós e observamos assim uma diminuição no brilho aparente da estrela a cada período orbital do planeta.

Os astrónomos captam este obscurecimento, regularmente repetido, na curva de luz da estrela, a qual representa a medição do brilho aparente da estrela, visto da Terra, ao longo de um período de tempo. O grau de diminuição do brilho, referido como a “profundidade do trânsito”, está relacionado com o tamanho (o raio) do planeta em trânsito. Para a mesma estrela, um planeta maior irá bloquear mais luz desta e causar um maior obscurecimento, ou um trânsito mais profundo.

Planeta de algodão doce, ou “hula hoop” ?

Um trânsito é portanto um efeito de sombra chinesa, e os anéis à volta de um exoplaneta (exoanéis) irão bloquear mais luz enquanto o planeta transita a sua estrela, fazendo com que ele nos pareça maior. A medição da massa desse planeta (utilizando um outro método) indicará um valor muito inferior ao esperado para o seu grande tamanho aparente, já que os anéis irão contribuir apenas muito pouco para a massa total do planeta. Ao combinar a massa e o grande raio aparente, obtém-se uma densidade muito baixa para o planeta, fazendo-o parecer empolado.

De facto, se se observasse o trânsito de Saturno diante do disco solar sem saber que tem anéis, pareceria um planeta insuflado, com um tamanho superior a uma vez e meia o seu tamanho real, e menos de metade da sua densidade verdadeira. Portanto, planetas “empolados” são bons alvos para procurar exoanéis. Um desses planetas, designado HIP41378f, foi recentemente estudado com vista à deteção de anéis, num trabalho de uma equipa do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e que liderei. No entanto, não é ainda claro se o seu tamanho empolado que observamos se deve à existência de anéis, e por isso permanece um bom candidato para pesquisas futuras.

Descobrir anéis em volta de novos mundos fora do Sistema Solar é outro dos meios que os astrónomos têm para aperfeiçoar o conhecimento que têm dos processos de formação e evolução de planetas.

A determinação de que um planeta é invulgarmente grande não é suficiente para confirmar a presença de anéis. Temos de encontrar a assinatura desses anéis induzida nos sinais do trânsito que são observados. Como os anéis modificam a forma da projeção do planeta sobre o disco da sua estrela de um modo que difere de um planeta estritamente esférico, eles causam deformações perceptíveis na curva de luz da estrela em relação ao seu desenho habitual.

Estas deformações na curva de luz são muito subtis, o que, em parte, justifica os exoanéis serem tão esquivos. Detetar essas deformações requer instrumentos muito precisos. Os telescópios espaciais têm um importante papel aqui, pois fornecem a melhor precisão para determinar as mínimas variações no brilho da estrela causadas por exoanéis. Esses telescópios incluem o popular Hubble, mas também o telescópio espacial CHEOPS, lançado em 2019, uma missão da Agência Espacial Europeia (ESA) com uma forte participação do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA). O IA tem dois membros na direção, dois membros na equipa científica, e quatro colaboradores no consórcio da missão CHEOPS.

Simulação do trânsito do exoplaneta HIP 41378 f.
Conceção artística do trânsito do planeta HIP41378f, com os hipotéticos anéis à sua volta.
Crédito: Tania Cunha / Planetário do Porto – Centro Ciência Viva / IA

Há vários fatores que podem influenciar a deteção de anéis em volta de um exoplaneta. Anéis como os de Saturno serão os mais fáceis de detetar porque as partículas estão mais densamente compactadas e são mais opacas, permitindo-lhes bloquear mais luz da estrela durante o trânsito. Além disso, a distância de intervalo entre a superfície do planeta e o raio interior do anel pode determinar o quão diferente a curva de luz do trânsito de um planeta com anéis será da de um planeta maior e sem anéis – um intervalo maior provoca maior deformação na curva de luz, tornando mais fácil identificar o efeito causado pelos anéis.

A orientação dos anéis no momento do trânsito também afeta a nossa capacidade para os detetar. Se os anéis forem vistos de perfil, ou seja, ao longo da sua fina espessura, não terão qualquer efeito sobre a curva de luz, e irão portanto passar despercebidos. Quando Saturno é visto de perfil, os seus anéis não são de todo visíveis.

Porém, os anéis tornam-se mais proeminentes e detetáveis se o seu plano estiver inclinado em relação à nossa linha de visão, de modo que uma maior área dos anéis é projetada sobre o disco da estrela e bloqueia maior quantidade da sua luz. Exoplanetas que orbitem mais longe da sua estrela são mais estáveis e têm maior probabilidade de apresentar orientações favoráveis à deteção dos seus anéis durante um trânsito, pois a influência gravitacional da estrela é menor e não força os anéis a adquirirem uma orientação próxima da do plano orbital, ou seja, praticamente de perfil em relação ao nosso ponto de vista.

Rumo a uma genealogia dos anéis

Vários telescópios espaciais, como o Kepler, da NASA, e o CoRoT, do Centre National d’Études Spatiales (CNES) e da ESA, observaram milhares de estrelas com o intuito de detetar e caraterizar planetas que as transitam. Escondidos nos dados observacionais poderão estar planetas com anéis à espera de serem descobertos. Investigadores do IA, incluindo eu próprio, estão a usar modelos computacionais e métodos estatísticos para procurar assinaturas de anéis nos dados observados com esses telescópios. É ainda de acrescentar que a procura de anéis é uma das maiores áreas de interesse da missão espacial CHEOPS. Susana Barros, também investigadora do IA, lidera o grupo de trabalho do consórcio CHEOPS dedicado à pesquisa de luas e anéis em torno de planetas de longo período em órbita de estrelas brilhantes.

Um facto conhecido acerca de corpos com anéis no Sistema Solar é o de todos eles orbitarem longe do Sol, para lá da designada “linha de gelo”, onde a baixa temperatura permite a formação de partículas geladas nos anéis. Contudo, a maioria dos exoplanetas descobertos orbita mais próximo da sua estrela, porque esses planetas têm maior probabilidade de ser vistos a transitar a estrela, e também porque os seus trânsitos ocorrem com maior frequência devido aos seus períodos orbitais mais curtos. Como estes planetas orbitam dentro da linha de neve, onde o gelo de água sublima (passa diretamente de sólido para gás), possíveis anéis em seu redor terão de ser feitos de materiais que suportem temperaturas mais altas sem se fundirem ou evaporarem, como o são as rochas.

Como é teoricamente possível que tais anéis existam em redor de exoplanetas, detetá-los permitir-nos-á comparar e contrastar com os objetos “anelados” já conhecidos no Sistema Solar. Irão também fornecer aos astrónomos informação sobre o ambiente onde o planeta se formou ou evoluiu. Já por si, os exoplanetas até agora descobertos exibem maior variedade de características do que os seus congéneres do Sistema Solar, por isso não será surpreendente detetar também exoanéis com outras propriedades.

Descobrir anéis em volta de novos mundos fora do Sistema Solar é outro dos meios que os astrónomos têm para aperfeiçoar o conhecimento que têm dos processos de formação e evolução planetária. Pode também lançar luz sobre a própria origem dos anéis, ajudando a decidir se eles são uma consequência natural da formação dos planetas, ou o resultado de processos evolutivos posteriores nos sistemas planetários. Além do mais, a deteção de vários exoplanetas com anéis permitir-nos-á determinar quão comuns ou raros são os planetas “anelados” na nossa galáxia, assim como o tempo de vida típico dos anéis.

Uma vez que eles estão também estreitamente associados às luas na sua evolução conjunta, a sua deteção poderá indicar a presença ou a formação de exoluas. Estas podem ter importantes consequências para a habitabilidade, tanto na própria lua, como no seu planeta companheiro. Um disco de formação de luas foi detetado recentemente em volta do jovem exoplaneta PDS 70c. Este tipo de disco é designado disco circumplanetário, de onde um planeta em formação ainda atrai material e onde luas se poderão também formar a partir de agregados no disco. O disco em volta de PDS 70c é cerca de 500 vezes maior do que os anéis de Saturno, por isso não são comparáveis neste momento da evolução do jovem planeta.

Mesmo que Saturno seja o “Senhor dos Anéis” no nosso Sistema Solar, há a possibilidade de que o seu trono venha a ser disputado no futuro, assim que descobrirmos um sistema de anéis potencialmente maior em torno de um exoplaneta.

Disponível sob licença de reutilização Creative Commons cc-by-sa


  1. Babatunde Akinsanmi é investigador de doutoramento em Astronomia na Universidade do Porto e investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA). A sua pesquisa centra-se na procura e deteção em exoplanetas de características como sejam anéis, achatamento em relação à forma esférica, ou deformações devidas a forças de maré.

Revisão de texto, edição e tradução do original inglês por Sérgio Pereira.