Uma equipa liderada pelo Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) utilizou a atmosfera de Titã como laboratório natural para aprofundar a química da molécula de metano, uma molécula que, na Terra, pode ser um subproduto da vida.
Titã é a segunda maior lua do Sistema Solar e a única com uma atmosfera densa. No topo dessa atmosfera, rica em nitrogénio e metano, a radiação do Sol produz uma grande diversidade de moléculas orgânicas, algumas delas encontramos também na Terra como constituintes da unidade básica da vida, a célula.
Uma equipa internacional liderada por Rafael Silva, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e mestre pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa), analisou a luz do Sol refletida pela atmosfera de Titã e identificou pela primeira vez quase cem assinaturas 1 que a molécula de metano (CH4) inscreve na banda visível do espectro eletromagnético, traços essenciais para a encontrar noutras atmosferas.
“Quanto mais conhecermos sobre as diferentes moléculas que participam na complexidade química da atmosfera de Titã, melhor vamos conhecer o tipo de evolução química que pode ter permitido, ou estar relacionado, com a origem da vida na Terra”
Rafael Silva
Além disso, a equipa encontrou possíveis indícios da presença da molécula de tricarbono (C3), uma molécula que poderá participar na cadeia de reações químicas que geram moléculas complexas em Titã. A confirmar-se, será a primeira deteção da molécula de tricarbono num corpo planetário. Estes resultados foram publicados num artigo 2 na revista científica Planetary and Space Science.
“A atmosfera de Titã funciona como um reator químico de dimensão planetária, produzindo muitas moléculas complexas baseadas no carbono”, diz Rafael Silva. “De todas as atmosferas que nós conhecemos no Sistema Solar, a atmosfera de Titã 3 é a mais semelhante com aquela que nós pensamos ter existido na Terra primitiva”.
O metano, que na Terra é um gás, fornece informação sobre processos geológicos e potencialmente sobre processos biológicos. É uma molécula que não sobrevive muito tempo nas atmosferas da Terra nem de Titã por ser rapidamente destruída pela radiação solar e de modo irreversível. Por esta razão, em Titã, o metano deverá estar a ser reposto por processos geológicos, como a libertação de gás subterrâneo.
Rafael Silva explica a relação entre as gamas de frequência da radiação eletromagnética e as moléculas que podemos identificar na luz de Titã.
Este trabalho trouxe nova informação sobre a própria química do metano. As 97 novas linhas da sua absorção espectral em comprimentos de onda da luz visível – nas regiões das cores laranja, amarelo e verde – foram identificadas em bandas de linhas já antes associadas à absorção pelo metano mas nunca individualizadas. Pela primeira vez conhece-se o comprimento de onda e intensidade de cada uma dessas linhas.
“Mesmo em espectros de alta resolução, as linhas de absorção do metano não são fortes o suficiente com a quantidade de gás que conseguimos ter num laboratório na Terra 4”, diz Rafael Silva. “Mas em Titã temos toda uma atmosfera, e o caminho que a luz atravessa na atmosfera pode ter centenas de quilómetros. Isso faz com que as diferentes bandas e linhas, que têm um sinal fraco em laboratórios na Terra, sejam muito evidentes em Titã.”
Conhecer e catalogar todas as assinaturas da molécula de metano ajudará também a destrinçar novas moléculas, sobretudo em atmosferas com uma química tão complexa, em que a análise dos espectros é desafiante pela densidade de assinaturas moleculares, mesmo com instrumentos de alta resolução.
Foi assim que a equipa encontrou sinais da possível presença da molécula de tricarbono (C3) nas altas camadas, a 600 quilómetros de altitude. No Sistema Solar, esta molécula, que se manifesta por uma emissão azulada, era até agora só conhecida no material envolvente ao núcleo de um cometa.
Esta lua de Saturno é um mundo único no Sistema Solar, sendo um campo de testes na preparação de futuras observações das atmosferas de planetas fora do nosso sistema planetário que possam ser pequenos e frios como Titã.
As linhas de absorção em Titã que a equipa associou ao tricarbono são poucas e de pouca intensidade, apesar de serem muito específicas deste tipo de moléculas, por isso serão realizadas novas observações no futuro para se tentar confirmar esta deteção.
Rafael Silva descreve como a luz do Sol refletida por Titã e a luz emitida pelas suas moléculas se misturam no espectro (ou “arco-íris”) da luz que nos chega de Titã.
“Quanto mais conhecermos sobre as diferentes moléculas que participam na complexidade química da atmosfera de Titã, melhor vamos conhecer o tipo de evolução química que pode ter permitido, ou estar relacionado, com a origem da vida na Terra”, diz Rafael Silva.
“Pensa-se que alguma da matéria orgânica que contribuiu para a origem da vida na Terra foi produzida na sua atmosfera por processos relativamente semelhantes aos que observamos em Titã”.
Atualmente, esta lua de Saturno é um mundo único no Sistema Solar, sendo um campo de testes na preparação de futuras observações das atmosferas de planetas fora do nosso sistema planetário, os chamados exoplanetas. Entre estes, poderão existir corpos pequenos e frios como Titã.
“A experiência adquirida em análises desafiantes como esta poderá vir a beneficiar observações no infravermelho com o telescópio espacial James Webb, ou a futura missão espacial Ariel, da Agência Espacial Europeia (ESA)”, comenta Pedro Machado, segundo autor deste artigo agora publicado. “A missão Ariel será dedicada ao estudo da atmosfera de cerca de mil exoplanetas e tem importante participação portuguesa liderada pelo IA, assim como um dos coautores deste estudo, Zita Martins, como Community Scientist 5 da ESA”.
Os dados utilizados para este trabalho vieram de observações realizadas em junho de 2018 com o espectrógrafo de alta resolução para o visível e ultravioleta UVES, instalado no Very Large Telescope (VLT), do ESO, no Chile. Foram também utilizados dados em arquivo recolhidos com o mesmo instrumento em 2005.
Notas
- As moléculas na atmosfera de um astro, como seja uma lua, planeta, ou estrela, ou até na cabeleira ou cauda de um cometa, são descobertas ou identificadas pela energia que emitem, ou pela energia que absorvem da luz incidente (em geral, a luz do Sol). Essa energia, na forma de radiação de comprimentos de onda específicos (que pode ir do rádio ao ultravioleta), é medida na decomposição da luz nas suas “cores”, ou espectro eletromagnético, através de linhas de emissão (luz) ou linhas de absorção (negras). Essas linhas são assinaturas químicas específicas de cada molécula. No caso de um espectro de média ou baixa resolução, pode não ser possível distinguir linhas muito próximas, e estas são classificadas em grupo como uma banda de emissão ou absorção.
- O artigo “A study of very high resolution visible spectra of Titan: Line characterisation in visible CH4 bands and the search for C3”, foi publicado em janeiro 2024 na revista Planetary and Space Science, Volume 240 (DOI: https://doi.org/10.1016/j.pss.2023.105836).
- A atmosfera de Titã é composta na sua maior parte por nitrogénio (94%) e em 5% por metano, uma molécula constituída por um átomo de carbono ligado a quatro átomos de hidrogénio (CH4). A alta atmosfera é rica em hidrocarbonetos, moléculas compostas por carbono e hidrogénio, de que o metano é um exemplo, e também por nitrilos, moléculas compostas por um grupo funcional de carbono e nitrogénio.
- Uma das maneiras de conhecer as assinaturas espectrais de uma molécula em laboratório é fazer passar luz por um gás composto por essa molécula e registar os comprimentos de onda em falta na luz resultante.
- A principal responsabilidade dos Community Scientists consiste em aconselhar a Agência Espacial Europeia na otimização dos dados da missão para a comunidade científica em geral.
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Rafael Silva, Pedro Machado
Grupo de Comunicação de Ciência
Sérgio Pereira; Ricardo Cardoso Reis; Filipe Pires (coordenação, Porto); João Retrê (coordenação, Lisboa)