Atrás de um grão de areia está a imagem com que abrimos esta página. Vamos ser indiscretos, e escrutinar esta foto de grupo.
Artigo de Sérgio Pereira e Davi Barbosa1, publicado no âmbito da colaboração entre o Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e a National Geographic Portugal.
É um grão de areia, está pousado na ponta do nosso dedo, visto à distância do comprimento do braço estendido. Atrás desse grão há uma minúscula porção de céu. Em vez de um vão escuro e vazio, essa porção de céu é a imagem com que abrimos este artigo – uma profusão de luzes, cores e formas. É um recanto típico do Universo.
O telescópio espacial James Webb observou na luz infravermelha esta porção de céu na direção da constelação do Peixe Voador, no hemisfério celeste sul, em junho de 2022. Que sentido podemos tirar de todas as manchas e traços que preenchem esta imagem?
Vemos em primeiro plano algumas dezenas de estrelas, que são os feixes de luz azulada a cruzarem-se num ponto brilhante – um efeito da óptica do telescópio, conhecido por difração, que se manifesta sempre que a fonte de luz seja pontual e muito intensa. São estrelas da nossa própria galáxia, a Via Láctea. Estão no máximo a algumas dezenas de milhares de anos-luz. Tudo o resto na imagem são galáxias e estão muito mais longe – a milhões, ou milhares de milhões de anos-luz.
São milhares e milhares de galáxias – a maior parte delas revelada por meros punhados de píxeis mais claros que sobressaem do fundo negro. Mas as maiores e mais visíveis formam um aglomerado – os astrónomos chamam-lhe um enxame de galáxias. Está a 4,6 mil milhões de anos-luz e tem um nome de catálogo pouco sedutor: SMACS 0723.
Ilhas de estrelas, gás, poeira,…
Quase toda a área desta imagem tem alguma coisa. A tecnologia atual perscruta o Universo até muito longe, revelando milhares de galáxias a distâncias muito diferentes, mas sobrepostas no enquadramento, sem perspetiva.
As galáxias do enxame SMACS 0723, no centro da imagem e mais brilhantes, estão a 4,6 mil milhões de anos-luz. Este é aproximadamente o tempo, em anos, que a sua luz viajou antes de atingir o espelho do telescópio. Mas, na mesma imagem, há galáxias mais próximas, à frente, e galáxias mais afastadas, atrás do enxame.
Se viajarmos pela imagem, é abismal a diversidade de formas que encontramos. No centro de cada uma das secções da figura 3 estão três exemplos de galáxias espirais, caracterizadas por um centro brilhante rodeado pelos típicos braços em espiral. Os braços têm habitualmente estrelas jovens e nuvens de gás e poeira, enquanto que o centro destas galáxias é em geral composto por uma população densa de estrelas mais antigas.
Na figura 4 vemos galáxias que parecem irregulares. As galáxias irregulares podem ser galáxias pequenas ainda em formação, ou galáxias que passaram por um processo recente de fusão com outra galáxia, e que pode deformar a sua estrutura.
De facto, as galáxias evoluem captando o gás envolvente, absorvendo galáxias mais pequenas, ou fundindo-se com outras de tamanho comparável. Num enxame de galáxias, onde as distâncias entre elas são menores, são muito mais prováveis estes encontros, sobretudo nos estágios iniciais de formação do enxame. Na figura 5 destacamos alguns detalhes da imagem e que poderão ser galáxias num momento de “sedução” mútua, ou que consumaram uma interação recente.
A atração gravitacional aproxima-as e deforma-as (por efeito de “forças de maré”), deixando rastos de estrelas e gás que as galáxias partilham ou trocam entre si. Após uma longa dança de milhões de anos, podem acabar por se unir.
Um telescópio cósmico
Em volta das fulgurantes galáxias que dominam o centro do enxame podemos ver dezenas de formas alongadas ou arqueadas (figura 6). Algumas parecem até espelhadas. Sugerem as deformações criadas por uma lente, ou pelo fundo de uma garrafa.
São imagens de galáxias atrás do enxame e que não fazem parte dele. O que aconteceu à sua luz para elas nos aparecerem assim? Este fenómeno foi previsto por Albert Einstein na sua Teoria da Relatividade Geral, publicada em 1915.
É a concentração de matéria, neste caso do enxame de galáxias em frente, que cria um campo gravitacional que deforma o espaço-tempo. A luz vinda de trás e que atravessa o enxame, em vez de aí percorrer uma trajetória retilínea, é desviada pela curvatura do espaço-tempo. O enxame atua como uma lente gravitacional e os arcos de luz contorcidos que vemos nesta imagem são o resultado.
A luz de galáxias distantes é distorcida mas também ampliada, permitindo-nos ver detalhes (ainda que deformados) em galáxias que de outro modo seriam muito pequenas. Como destacamos na figura 7, o enxame atua como um telescópio cósmico natural.
Quanto mais curvada ou desviada for a luz, maior será a massa subjacente ao campo gravítico que a desviou – a massa total do enxame. A observação do efeito de lentes gravitacionais veio confirmar o que já se supunha por outros meios: que há dez a vinte vezes mais matéria nos enxames do que aquela que é possível contabilizar só pela observação da radiação que emitem. A adicionar à matéria comum, há uma matéria invisível, chamada “matéria escura”.
Regras do grupo
As galáxias que dominam o centro da imagem – e do enxame SMACS 0723 – (figura 8), são galáxias elípticas. Em geral, são galáxias maiores do que as galáxias espirais, com muito mais estrelas e massa. Consumiram quase todo o seu gás e poeira na formação de estrelas, e apresentam um aspeto homogéneo, sem características salientes, e com uma tonalidade esbranquiçada. Esta cor, nesta imagem que foi originalmente captada na luz infravermelha, indica a quase ausência de poeira, em contraste com as nebulosas e nuvens típicas dos braços das galáxias espirais.
O centro do enxame é a zona mais profunda do “poço” gravitacional, onde existe maior concentração da matéria, tanto matéria comum como, e sobretudo, matéria escura (invisível). Por se encontrarem no centro, estas galáxias foram ao longo do tempo “engolindo” outras que “escorregaram” para esse poço. Assim cresceram em tamanho e quantidade de matéria.
Pensa-se que muitas galáxias elípticas terão sido originalmente galáxias espirais que “devoraram” outras. A fusão de galáxias, pela compressão do gás que acarreta, acelera a formação de novas estrelas, o que por sua vez consome rapidamente esse gás, e a galáxia pode deixar de conseguir formar novas estrelas. Torna-se quase em exclusivo uma população compacta de estrelas envelhecidas.
A aura luminosa que vemos na figura 8, em torno das gigantes elípticas que se encontram no centro do enxame, não é um efeito óptico. É um extenso halo de estrelas dispersas muito para lá dos aparentes limites da zona mais compacta destas galáxias.
A periferia do enxame é mais “tranquila”, e é onde as galáxias espirais conseguem orgulhosamente conservar durante mais tempo os seus braços de gás e poeira. Aí, o processo de formação de novas estrelas prolonga-se por muito mais tempo.
Na figura 9 vemos duas galáxias não perfeitamente elípticas – apresentam ainda vestígios de estruturas. A galáxia ao centro parece ter um anel, e a outra à direita, uma sugestão de espiral. São exemplos de galáxias lenticulares, que embora semelhantes às elípticas, possuem um disco de estrelas de dimensão reduzida.
Nas muitas galáxias que preenchem a imagem observamos diferentes cores. Porém, o telescópio James Webb observa na luz infravermelha, o que significa que as cores que vemos (por exemplo, na figura 10) são transposições de gamas de comprimentos de onda de infravermelho (que são invisíveis aos nossos olhos) para a região do visível do espectro eletromagnético.
Nas imagens obtidas originalmente na luz visível (como a maioria das imagens do telescópio espacial Hubble), as cores devem-se sobretudo à luz das estrelas. Uma galáxia azulada contém muitas estrelas jovens e quentes, enquanto que uma galáxia avermelhada contém estrelas envelhecidas e que arrefeceram. No caso de galáxias longínquas, os tons avermelhados também podem indicar o efeito da expansão do Universo sobre a luz que delas nos chega, “esticada” por essa expansão para comprimentos de onda maiores – o chamado “desvio para o vermelho”.
Nas imagens produzidas pelo James Webb, as cores têm outro significado. Permitem inferir o conteúdo de poeira das galáxias que vemos na imagem. Os tons azuis ou esbranquiçados indicam a quase ausência de poeira nessa galáxia. Os tons vermelhos ou alaranjados indicam que densas camadas de poeira cobrem a luz das estrelas, ou então, tal como nas imagens obtidas na luz visível, indicam o efeito de desvio para o vermelho produzido pela expansão do Universo.
Na figura 11 temos o exemplo de uma galáxia posicionada quase de perfil e onde é evidente o disco de poeira que encobre quase toda a luz das estrelas da galáxia.
A perder de vista
Na figura 12 vemos uma ampliação de uma zona do fundo da imagem, à esquerda da estrela mais brilhante. Identificamos inumeráveis galáxias, quase indistintas.
De algumas, pouco mais vemos do que o seu centro brilhante. As mais avermelhadas de entre estas são galáxias muito distantes, e por isso devem ser intrinsecamente muito brilhantes. Como a sua luz só chegou a nós depois de uma longa viagem, vemo-las como eram quando o Universo era jovem.
Uma das galáxias mais distantes (e antigas) identificada nesta imagem está em destaque na figura 13. Ao analisarem a luz da pequena mancha vermelha, os astrónomos descobriram que ela foi emitida há cerca de 13,1 mil milhões de anos. A idade atual estimada para o Universo é de 13,8 mil milhões de anos, por isso esta é uma das primeiras galáxias na história do Cosmos.
De muitas outras galáxias apenas percebemos uma vaga mancha subtilmente mais clara do que a cor de fundo – talvez galáxias difusas, com uma população de estrelas muito dispersa. Mas podem até ser, afinal, galáxias anãs próximas, situadas à frente do enxame – os próximos estudos poderão revelar este e outros mistérios desta belíssima imagem.
Disponível também no website da National Geographic Portugal
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Notas
- Sérgio Pereira é mestre em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova de Lisboa, com especialização em jornalismo de revista na Universidade de Nottingham Trent, no Reino Unido. Com formação de base em Design de Comunicação, é comunicador de ciência no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA), onde produz conteúdos, eventos e projetos que estabelecem pontes entre a sociedade, a cultura e a astronomia.
Davi Barbosa é doutorando em Astrofísica no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa). Estuda galáxias distantes, que nos permitem saber como eram estas “ilhas” de estrelas e gás no passado do Universo. Para isso utiliza telescópios que observam nas frequências rádio (radiotelescópios). Também gosta de divulgar ciência, e tem um podcast, o GrandeMente.
Revisão científica por Catarina Lobo, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e da Universidade do Porto.