As galáxias gostam de estar juntas e socializar, por vezes aos milhares. Nos enxames de galáxias há umas que dominam, mas o que as mantém juntas não se vê.
Artigo por Davi Barbosa1 , publicado no âmbito da colaboração entre o Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e a National Geographic Portugal.
É fácil ver uma galáxia, ou parte dela: as estrelas, mas também as nebulosas de gás e poeira da nossa galáxia, a Via Láctea, numa noite de céu limpo e num local escuro. Durante quase toda a história da Humanidade pensou-se que havia apenas uma galáxia: a nossa. Mas em Janeiro de 1926, o Universo multiplicou o seu tamanho, comparado ao que se sabia, quando Edwin Hubble, astrónomo norte-americano, revelou que haviam outras, para além da Via Láctea.
Estrelas, gás e poeira,… Era assim que então os astrónomos entendiam o que são as galáxias. Foram precisos menos de dez anos depois da descoberta de Hubble para se perceber que a receita não estava completa: há nas galáxias outro ingrediente.
A matéria escura ainda não se deixou decifrar – que espécie de partícula ou campo será ? – mas uma coisa é certa: é ela que faz as galáxias socializarem
Também nos EUA, mas de nacionalidade suíça, Fritz Zwicky dedicou-se em 1933 a estudar um grupo de galáxias na constelação da Cabeleira de Berenice. Mediu as velocidades individuais das galáxias, os seus movimentos, e ficou claro que elas estão ligadas numa dança de grupo.
O mais surpreendente foi descobrir que, às velocidades a que elas se deslocam, aquele convívio galáctico não poderia durar muito. As velocidades são tão elevadas que, para o conjunto se manter coeso, tem de existir muito mais matéria do que é possível contabilizar só pela observação da luz. Alguma espécie de “cola” mantém as galáxias juntas.
No início da década de 1970, Vera Rubin, astrónoma norte-americana, mediu as velocidades das estrelas em galáxias individuais e chegou a uma conclusão semelhante: em geral, há dez vezes mais matéria nas galáxias do que aquela que conseguimos ver. Hoje sabe-se que a matéria comum – de que são feitas as estrelas, os planetas, as montanhas e os nossos corpos – representa cerca de dez por cento da massa das galáxias, como se estima na nossa Via Láctea. As galáxias também são feitas – e são sobretudo feitas – de um outro tipo de matéria, a matéria escura.
Estima-se que cerca de 60 por cento das galáxias no Universo encontram-se em enxames, em vez de viverem isoladas.
Este nome foi dado por Zwicky e permaneceu, mas de facto é um tipo de matéria invisível, ainda desconhecida, que não emite, nem reflete, e não interage com a matéria comum nem com a luz senão através dos efeitos gravitacionais que exerce.
Uma galáxia define-se por ser um sistema autónomo (para diferenciar dos aglomerados globulares que são parte e gravitacionalmente ligados a uma galáxia) de estrelas, gás, poeira e um halo essencialmente de matéria escura. Dependendo da sua história e do ambiente em que cresceu, as proporções destes ingredientes podem variar. Pode também ter uma contribuição significativa do seu buraco negro supermassivo e central, que se pensa existir no centro das galáxias, e que pode ter milhões ou milhares de milhões de vezes a massa do Sol.
Metrópoles cósmicas
A matéria escura ainda não se deixou decifrar – que espécie de partícula ou campo será ? – mas uma coisa é certa: é ela que faz as galáxias socializarem – nos grupos e enxames de galáxias. Paradoxalmente, as galáxias não são a componente principal dos enxames em termos de massa. De facto, são a sua componente residual. Estima-se que contribuem apenas com dois a três por cento para a massa total do enxame.
A matéria escura é dominante e contribui com 80 a 85 por cento em massa para os enxames. Pensamos que os enxames formam-se precisamente por existir aí uma região rica em matéria escura. O meio que preenche o espaço entre as galáxias – meio intergaláctico – contribui com cerca de 13 a 16 por cento, e é composto principalmente por plasma.
O plasma é um estado da matéria em que os átomos do gás, ficando este muito quente, perdem os eletrões, que se tornam livres e emitem luz. O meio intergaláctico contém também partículas relativísticas (que se movem próximas à velocidade da luz) e campos magnéticos.
O plasma é muito rarefeito (ao contrário do denso plasma de que são feitas as estrelas), mas é extremamente quente, da ordem de milhões de graus. Pensa-se que seja aquecido – ou seja, as suas partículas são aceleradas a grandes velocidades – pelo próprio processo de crescimento e fusão das galáxias, ou pelos ventos e jactos de material lançados pelos buracos negros supermassivos alojados no centro das galáxias maiores, geralmente dominantes do sistema.
As galáxias tendem a agrupar-se devido à ação gravitacional. Estima-se que cerca de 60 por cento das galáxias no Universo encontram-se em enxames, em vez de viverem isoladas. A nossa galáxia também vive num enxame de galáxias, o chamado Grupo Local.
É comum o centro de um enxame ser ocupado por uma galáxia dominante. Costuma ser uma galáxia elíptica gigante. As galáxias elípticas são diferentes de galáxias como a Via Láctea, que é uma galáxia espiral, com estrelas relativamente jovens e azuladas (muito quentes) nos seus braços espirais.
As galáxias elípticas têm em geral muito mais massa do que as galáxias espirais e são maiores. São constituídas principalmente por estrelas avermelhadas, por isso menos quentes, e têm muito pouco gás. Na falta de reservatórios internos de gás, estas galáxias já praticamente não formam novas estrelas.
O astrónomo Alan Dressler mostrou em 1980 que as galáxias que habitam em diferentes partes do enxame podem ter formas diferentes. Encontramos mais galáxias espirais nas regiões de menor densidade do enxame, na sua periferia, enquanto que com as galáxias elípticas acontece o oposto.
Pensa-se que as galáxias elípticas são o estágio final das fusões entre galáxias umas com as outras. Os braços das galáxias espirais são estruturas que não resistem muito à fusão com outras galáxias. Além disso, a compressão do gás durante o choque das galáxias resulta num rápido consumo desse gás na formação intensiva de novas estrelas e também enriquecendo o meio intergaláctico. É isto que justifica que a galáxia resultante seja pobre em gás e poeira, como o são as galáxias elípticas.
Para além do que os olhos veem
Como em qualquer sociedade, as interações entre os seus membros geram muitos fenómenos interessantes. Nos enxames de galáxias ocorrem alguns processos que só conhecemos quando os observamos em frequências da luz não visível.
Observado nos raios X, o plasma fornece outras informações, como a sua temperatura, velocidades a que o material se desloca, e densidade. Podemos observar o material de fora das galáxias que cai para elas, fornecendo-lhes novo gás para novas estrelas.
Entre as galáxias do enxame – no chamado meio intergaláctico – há muito material, o plasma, como dissemos atrás. Sendo muito quente, emite luz sobretudo nas radiações de altas energias, como os raios X. Nesta radiação, os enxames de galáxias brilham de forma muito mais extensa do que vemos na luz visível.
Podemos usar telescópios espaciais para observar nesta gama da luz, como o futuro telescópio Athena, da Agência Espacial Europeia (ESA), e que conta com a participação do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA).
Por exemplo, a composição química do plasma tem informação sobre os ciclos de formação e morte de estrelas nas galáxias que estão no enxame. As estrelas de maior massa terminam a sua vida com uma explosão extremamente violenta, chamada supernova. Nessa explosão lançam grande parte do seu material para o meio envolvente – incluindo para o meio exterior à galáxia.
Há enxames pequenos e grandes (um enxame típico pode ter 15 milhões de anos-luz de diâmetro), com dezenas ou centenas de galáxias, e podem ser mais ou menos densos – tudo depende de quão rica em matéria escura é essa região do espaço.
Os astrónomos procuram neste meio intergaláctico por assinaturas de elementos químicos, por exemplo, o hélio – o elemento químico produzido durante a maior parte do tempo de vida das estrelas. A quantidade de hélio permite-lhes estimar a frequência de supernovas no passado, e assim a escrever a biografia coletiva do enxame.
Observado nos raios X, o plasma fornece outras informações, como a sua temperatura, velocidades a que o material se desloca, e densidade. Podemos observar o material de fora das galáxias que cai para elas, fornecendo-lhes novo gás para novas estrelas. Esse material pode também alimentar os buracos negros supermassivos no núcleo das galáxias.
De facto, muito do que acontece num enxame pode ser atribuído a buracos negros supermassivos que se encontrem em fases de ativa absorção de material envolvente. A sua galáxia hospedeira é designada uma galáxia ativa. O vórtice de material acelerado e extremamente quente em queda para o buraco negro emite muita luz em todos os comprimentos de onda.
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A energia e os campos magnéticos destes fenómenos portentosos podem enviar material de volta para fora da galáxia na forma de jactos expelidos a partir da região central. Estes jactos, observados nas frequências rádio, podem ser tão grandes que ultrapassam várias vezes o tamanho da própria galáxia e estendem-se para o meio intergaláctico.
Nestes processos, há o risco de os buracos negros supermassivos depauperarem a galáxia do seu reservatório de gás, de tal modo que esta já não consegue formar novas estrelas. As violentas expulsões de material podem igualmente perturbar a formação de estrelas nas galáxias vizinhas. Em suma, a vida social num enxame de galáxias pode não ser nada tranquila!
Até onde o espaço alcança
A grande concentração de matéria escura que envolve um enxame de galáxias é responsável por certas imagens de galáxias que nos parecem deformadas, ou mesmo por longos arcos de luz mais ou menos concêntricos, como se víssemos através do fundo de uma garrafa. Este fenómeno é designado por “lente gravitacional” e permite ver imagens ampliadas de galáxias distantes, que estão muito atrás do enxame.
Foi predito pela Teoria da Relatividade de Einstein, pois esta afirma que a matéria deforma o espaço-tempo, e que a luz, ao percorrer a curvatura do espaço-tempo, se desvia da sua trajetória retilínea. A luz de galáxias distantes, ao atravessar o enxame, é desviada e a imagem original surge distorcida e ampliada.
Quanto mais desviada for a luz neste processo, maior deverá ser o campo gravitacional que está a deformar o espaço-tempo e maior a massa do enxame. As lentes gravitacionais permitem assim estimar a massa total do enxame por onde a luz passou.
É isso que fará o telescópio espacial Euclid, da Agência Espacial Europeia (ESA), lançado em julho de 2023, mas com ainda maior detalhe. Irá estudar efeitos ainda mais pequenos – as microlentes gravitacionais – de modo a se poder fazer o mapa da distribuição da matéria escura subjacente.
Segundo a teoria mais consensual, os super-enxames estão embebidos em filamentos de matéria escura que se estendem entre espaços vazios. Os maiores enxames ocupam interseções desses filamentos.
É essa distribuição que dita a dimensão e a forma do enxame. Há enxames pequenos e grandes (um enxame típico pode ter 15 milhões de anos-luz de diâmetro), com dezenas ou centenas de galáxias, e podem ser mais ou menos densos – tudo depende de quão rica em matéria escura é essa região do espaço.
Os grupos ou enxames pequenos podem ser parte de outro maior, conforme a escala que estivermos a considerar. Os enxames de galáxias podem por sua vez agrupar-se em super-enxames. Estas são as maiores estruturas do Universo, podendo incluir milhares de galáxias.
Como é que distinguimos os vários grupos ou enxames dentro de um super-enxame? Fazemo-lo como o fez Fritz Zwicky: medindo as velocidades dos seus membros, das suas galáxias.
Imaginemos um grande navio, com uma velocidade comum a todos os passageiros. Cada passageiro, ao caminhar pelo convés, tem a sua velocidade própria. Se um grupo de pessoas se encontra para conversar enquanto caminha, partilha a mesma velocidade, que é distinta (em intensidade e direção) da dos restantes passageiros. Serão então considerados um subgrupo dentro do navio. O nosso navio é um super-enxame de galáxias, e este grupo de passageiros é um enxame.
A missão Euclid, através do seu telescópio espacial, irá estudar milhares de milhões de galáxias reais e ajudar a produzir um mapa da matéria escura no Universo.
Segundo a teoria mais consensual, os super-enxames estão embebidos em filamentos de matéria escura que se estendem entre espaços vazios. Os maiores enxames ocupam interseções desses filamentos. Estas estruturas filamentares fazem parte de uma rede cósmica – uma “rede neuronal” do Universo. Onde não vemos nada, são os grandes vazios.
Observações das distâncias entre as galáxias no Universo, principalmente as observações mais profundas que conseguimos realizar, mostram que o Universo é feito dessas regiões de grande densidade de galáxias e de regiões de vazio. Simulações feitas com computadores confirmam esta mesma estrutura, como a maior simulação de um catálogo de galáxias até agora produzida, preparada pela equipa da missão espacial Euclid, da ESA. Contém mais de dois mil milhões de galáxias simuladas.
A missão Euclid, através do seu telescópio espacial, irá estudar milhares de milhões de galáxias reais e ajudar a produzir um mapa da matéria escura no Universo. Talvez a futura ciência que este telescópio permitirá produzir, e que conta com forte participação da comunidade científica portuguesa, nos faça voltar a olhar para os enxames de galáxias e ver algo que agora nos é ainda invisível.
Disponível também no website da National Geographic Portugal
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- Davi Barbosa é doutorando em Astrofísica no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa). Estuda galáxias distantes, que nos permitem saber mais sobre essas “ilhas” de estrelas e gás do Universo. Para isso utiliza telescópios que observam nas frequências rádio (radiotelescópios). Também gosta de divulgar ciência, e tem um podcast, o GrandeMente.
Revisão de texto e edição por Sérgio Pereira.