Estrelas que brilham no tempo: Vera Rubin

Vera Rubin.

Vera Rubin. Créditos: NOAO/AURA/NSF

Há muito mais no Universo do que os olhos veem, confirmou-o uma das mulheres que se tornou uma inspiração para futuras gerações de astrónomas.

Vera Cooper Rubin nasceu em 1928 em Filadélfia, nos Estados Unidos. Teve a sorte, hoje rara, de crescer numa casa em que podia ver o céu estrelado da janela do seu quarto.

Aos cinco anos, em 1933, talvez não conhecesse ainda os nomes das constelações, mas poderia já ter passado o olhar por uma zona do céu perto das constelações do Leão e da Virgem. Há aí uma pequena constelação designada Cabeleira de Berenice ou, em latim, Coma Berenices.

Uma espécie de “cola” que mantém as galáxias juntas

Nesta direção do céu é possível observar um enorme agrupamento de galáxias: o enxame de Coma. Foi para aí que Fritz Zwicky, astrofísico suíço que trabalhou a maior parte da sua vida nos Estados Unidos, apontou o telescópio do Observatório do Monte Palomar, na Califórnia, no início dessa década de 1930.

Enxame de Coma
Enxame de galáxias de Coma.
Créditos: Robert Franke.

Queria medir a velocidade a que as galáxias do enxame se movem dentro desta estrutura, dominada por duas enormes galáxias elípticas. Um dos seus objetivos era conhecer a distribuição da matéria no enxame.

Para compreendermos a ideia de Zwicky, consideremos um atleta lançador do martelo. À medida que ele roda sobre si próprio atribuindo maior velocidade à bola na extremidade do martelo, terá de exercer maior força na pega para que aquele não lhe fuja das mãos.

Também no enxame de Coma, à medida que as galáxias se movem em várias direções em torno do centro, uma força terá de as manter no grupo e assim evitar que o enxame se desmembre. Essa força é a força gravítica, e a força gravítica é exercida pela matéria. A velocidade das galáxias é assim um meio indireto de estimar a quantidade total de matéria do enxame.

Fritz Zwicky
O astrónomo suíço Fritz Zwicky.
Créditos: Fritz Zwicky Foundation.

Mas Fritz Zwicky descobriu que as galáxias se movem a uma velocidade excessiva – era uma velocidade excessiva para a quantidade de matéria visível no enxame, ou seja, matéria luminosa, na forma de estrelas, ou opaca à luz, como nuvens de gás e poeira. Para que aquele grupo de galáxias se mantivesse unido, teria de existir uma enorme quantidade de matéria invisível a servir de “cola”, a que ele chamou “matéria escura”.

 

O trabalho de Zwicky não mereceu muita atenção na época. As suas observações poderiam ser interpretadas de várias outras formas, e faltavam mais evidências para a existência dessa matéria escura. É aqui que Vera Rubin, quase trinta anos depois, irá ter um papel fundamental.

Avançar num universo de homens

Vera Rubin formou-se em 1948 no colégio Vassar, um colégio universitário para raparigas em Nova Iorque. Foi a única aluna do seu ano a formar-se em astronomia. Candidatou-se depois ao doutoramento na Universidade de Princeton, cidade situada entre Filadélfia e Nova Iorque, mas a sua candidatura foi recusada por o programa de astrofísica apenas admitir homens, política que manteve até 1975.

Candidatando-se então ao mestrado na Universidade de Cornell, mais longe mas ainda dentro do estado de Nova Iorque, Vera Rubin teve como professores cientistas excecionais, como Richard Feynman ou Hans Bethe. Em 1951 ingressou no doutoramento na Universidade de Georgetown, em Washington, sob a orientação de outra figura da ciência do século XX, George Gamow, um dos principais defensores da teoria do Big Bang.

Vera Rubin teve dificuldade em ter acesso ao observatório do Monte Palomar e, quando o conseguiu, tornou-se na primeira mulher a fazê-lo.

Durante o seu doutoramento, Vera Rubin passou pela situação caricata de ter de se reunir com Gamow no corredor, por as mulheres não serem admitidas nos gabinetes. A sua tese doutoral centrou-se no estudo da distribuição das galáxias no espaço, organizadas em grupos, em vez de distribuídas de forma aleatória, como se pensava na época.

Este e outros trabalhos seus, produzidos nos anos seguintes, só receberam a merecida atenção muitos anos mais tarde, mas Rubin persistiu, movida pela paixão pessoal mais do que pelo reconhecimento da comunidade.

Em 1965 ingressou no Instituto Carnegie, também em Washington. Este instituto partilhava com o Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) o Observatório do Monte Palomar, na Califórnia, o mesmo onde Fritz Zwicky observara o enxame de Coma, mais de trinta anos antes.

Vera Rubin teve dificuldade em ter acesso a este observatório e, quando o conseguiu, tornou-se na primeira mulher a fazê-lo. Descobriu-lhe também uma deficiência: não havia quarto de banho de senhoras. Resolveu o assunto facilmente, desenhando uma senhora de saia e colando o desenho na porta de um dos quartos de banho.

Observatório do Monte Palomar, Califórnia.
Créditos: Utilizador Digadigado no website WikiCommons.

Estrelas demasiado rápidas

Vera Rubin e o seu colega Kent Ford começaram a estudar o movimento das estrelas nos discos das galáxias, e o próprio movimento de rotação das galáxias. Depois de o tentarem fazer para a nossa galáxia Via Láctea, que porém não se presta a este tipo de estudo pelo facto de a estarmos a observar a partir de dentro, apontaram para um segundo alvo: a galáxia de Andrómeda, a maior galáxia na vizinhança da nossa.

Nesta altura, os astrónomos viam as galáxias como cidades de estrelas, com a região mais interior muito luminosa, chamada bojo, com a maior concentração de estrelas, estando as restantes distribuídas num disco, mais extenso e ligeiramente mais massivo mas menos luminoso devido ao maior espaçamento entre as estrelas.

A luz era também vista como um indicador de como a matéria estaria distribuída na galáxia, aparentemente com a maior parte concentrada na zona mais central, ficando mais rarefeita na periferia.

Galáxia de Andrómeda
A Galáxia de Andrómeda. São visíveis a região mais interior muito luminosa, chamada bojo, com a maior concentração de estrelas, e o disco, mais extenso.
Créditos: ESA/Hubble & Digitized Sky Survey 2. Acknowledgment: Davide De Martin (ESA/Hubble)

Como a força de gravidade diminui com a distância, Vera Rubin e Kent Ford, assim como qualquer cientista naquela época, esperavam que as estrelas da periferia, supostamente menos presas gravitacionalmente ao centro galáctico pela sua maior distância, se deveriam mover muito mais devagar do que aquelas mais interiores. Se assim não fosse, seriam lançadas para fora da galáxia, tal como ao atleta lhe fugirá o martelo das mãos se ele o acelerar sem ao mesmo tempo o agarrar com mais força pela pega.

Mas tal não acontece. Rubin verificou que as estrelas da periferia do disco de Andrómeda se deslocam praticamente à mesma velocidade das estrelas que povoam a região interior do disco, mais perto do bojo. Quando os dois cientistas repetiram este estudo para mais sessenta galáxias do mesmo tipo, a diferentes distâncias no Universo, verificaram o mesmo para todas elas.

Durante muito tempo olhámos para as galáxias como ilhas no oceano cósmico. Mas graças ao caminho iniciado por Zwicky e Rubin, hoje sabemos que essas ilhas são os cumes de enormes “montanhas submarinas”.

Era como se uma matéria invisível preenchesse toda a galáxia, e obrigasse também as estrelas na periferia a moverem-se rapidamente. Esta matéria excedia em pelo menos nove vezes a matéria observável pelo que, tal como se percebeu mais tarde, nem somando as nuvens de gás frio, a poeira interestelar, as estrelas menos quentes apenas visíveis no infravermelho e os buracos negros, se conseguiria obter tal quantidade de matéria em falta.

Quando publicaram estes resultados, no início dos anos 70, veio de novo à luz o trabalho de Fritz Zwicky, publicado quase quarenta anos antes. O trabalho de Vera Rubin era uma nova evidência, e bastante consistente, para a existência da tal “matéria escura”.

Não somos feitos da mesma matéria que a maior parte do Universo

Mas a investigação de Rubin só se tornou popular quando surgiram novas evidências no início da década de 1980, desta vez vindas da cosmologia. Por exemplo, a imagem obtida pelo satélite COBE e pelos seus sucessores WMAP e Planck – uma fotografia do Universo na sua infância, quando tinha apenas 380 000 anos – revela, segundo os cientistas, informação sobre a matéria que constitui o Universo.

Essa imagem só pode ser explicada se a matéria de que são feitas as estrelas, os planetas e o nosso próprio corpo constituir apenas dez ou, quando muito, vinte por cento de toda a matéria no Universo.

Durante muito tempo olhámos para as galáxias como ilhas no oceano cósmico. Mas graças ao caminho iniciado por Zwicky e Rubin, hoje sabemos que essas ilhas são os cumes de enormes “montanhas submarinas”: as galáxias estão banhadas em enormes halos de matéria escura.

Estrutura de larga escala do Universo, formada por filamentos de matéria escura.
Estrutura de larga escala do Universo, formada por filamentos de matéria escura.
Créditos: Andrew Pontzen and Fabio Governato

Sabemos ainda que foi o colapso gravitacional dessa matéria escura que produziu a estrutura filamentar a larga escala do Universo: os filamentos, que delimitam regiões mais “vazias”, estão povoados por matéria escura e “iluminados” pelas galáxias, que se concentram em maior número nos nodos onde os filamentos se cruzam (e onde se localizam alguns dos maiores enxames de galáxias).

Evocando de forma poética o facto de a maior parte dos elementos químicos ter sido produzida no interior das estrelas, Carl Sagan popularizou a frase “Somos feitos da matéria das estrelas”. Mas as estrelas, os planetas e nós próprios não somos feitos da mesma matéria de que é feita a maior parte do Universo.

Imagem artística do satélite Euclid.
Imagem artística do satélite Euclid.
Crédito: ESA/C. Carreau

E ninguém sabe ainda em que consiste este tipo de matéria! Astrofísicos e físicos de partículas estão ativamente à procura. Uma das próximas missões da Agência Espacial Europeia (ESA), a missão Euclid, irá ajudar a esclarecer este mistério, uma missão com participação direta do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço. E tudo começou com Fritz Zwicky e Vera Rubin, à distância um do outro de uma geração.

Vera Rubin faleceu em 2016. O telescópio norte-americano Large Synoptic Survey Telescope (Grande Telescópio Sinóptico de Rastreio – LSST), no Chile, foi renomeado em janeiro de 2020 como Observatório Vera C. Rubin, tornando-se o primeiro observatório norte-americano a receber o nome de uma mulher.

Vera Rubin tem também o seu nome atribuído a um cume em Marte. Se um dia os humanos lá conseguirem ir, esperemos que lhe coloquem aí um memorial. Será mais que merecido!


Nota
O Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço associa-se à celebração dos 100 anos da União Astronómica Internacional (IAU) através de várias iniciativas ao longo de 2019. Uma delas consiste na rubrica “Estrelas que brilham no tempo”, em que recordaremos figuras importantes na história da astronomia dos últimos 100 anos. Esta rubrica será objeto de uma breve apresentação no início de cada uma das sessões das Noites no Observatório durante o ano de 2019.