Investigadora do IA está no Ártico e vai ajudar a “caçar” auroras

Filipa Barros em Svalbard, Noruega

Filipa Barros, estudante de doutoramento no IA e na Universidade do Porto, em Svalbard, no arquipélago de Spitsbergen, na Noruega. © Filipa Barros

Filipa Barros é estudante de doutoramento no IA e na Universidade do Porto, e aplica a engenharia de computadores ao estudo da física do Sol. Foi o Sol que lhe abriu caminho para terras frias: nos próximos quatro meses e meio estará a 78º de latitude norte, em Svalbard, no arquipélago de Spitsbergen, na Noruega.

No seu doutoramento, a Filipa aplica técnicas de aprendizagem automática ao estudo de fenómenos solares, mas agora no Centro Universitário de Svalbard (UNIS) vai explorar um campo relacionado: as auroras boreais e o campo magnético da Terra.

Em conversa, ela explica-nos como começou esta colaboração com a UNIS e que projeto vai desenvolver nesta sua primeira estadia rodeada pelo Oceano Polar Ártico, que se irá estender até 15 de dezembro.

 

P: Como é que surgiu esta tua colaboração com o Centro Universitário de Svalbard [UNIS]?

Filipa Barros: Eu trabalho na área de informática aplicada ao estudo do vento solar, mais particularmente com ferramentas de inteligência artificial, e parte do meu doutoramento é feito em França com o Instituto de Investigação em Astrofísica e Planetologia, em Tolouse [IRAP].

Um dos investigadores deste instituto tem uma parceria já há alguns anos com o instituto norueguês UNIS, em Svalbard. Uma colega minha já tinha lá estado, para fazer um curso que eu irei também fazer agora.

Esta minha participação na colaboração surgiu quase como uma conversa de café. Conversei um pouco com esse investigador. Ele disse-me que existia um projeto de colaboração ainda ativo e que ainda tinha fundos disponíveis. O meu currículo está em linha com o que eles estavam à procura, pelo que a oportunidade surgiu de eu estar no lugar certo à hora certa e ter o interesse e as capacidades técnicas necessárias.

Vista da cidade de Svalbard, Noruega.
Vista da cidade de Svalbard, Noruega.
© Filipa Barros

O que é que eles viram no teu currículo, precisamente nessas capacidades técnicas que lhes despertaram o interesse em escolher-te?

Eu sou formada em engenharia eletrotécnica e de computadores, e agora o meu doutoramento é focado em ciências de computadores, mais especificamente em aprendizagem automática nestas áreas. No meu doutoramento eu tentei ganhar conhecimento na parte do Sol e do vento solar, e por isso também me formei nessa área com disciplinas na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Além disso, a minha tese de mestrado já foi feita na junção destas duas áreas, o que lhes despertou este interesse.

“Nós queremos perceber as implicações do desvio do campo magnético da Terra. Há implicações turísticas, por exemplo, como seja antecipar a intensidade que terão as auroras em Svalbard daqui a uns anos. Mas há também o problema da geolocalização.”
Filipa Barros

O que eu vou estudar na Noruega são as auroras boreais e a interação do vento solar com a atmosfera da Terra. Esta interação e a possibilidade de automatizar o seu estudo, através das ferramentas de aprendizagem automática, interessou-lhes bastante.

Também já participei noutros projetos como o lançamento do CubeSat, que demonstram uma capacidade interdisciplinar que lhes interessa, todas relacionadas com a área do Espaço, mas tendo como base as capacidade técnicas de engenharia eletrotécnica e informática.

 

Quais são as perguntas científicas do projeto em que vais participar?

O projeto MAPAT [acrónimo do inglês para Pulsações Magnéticas e Fenómenos Transientes] é uma colaboração entre o instituto universitário UNIS, na Noruega, uma universidade e um instituto da Academia das Ciências da Rússia, em Moscovo, e o instituto francês IRAP, a que estou associada.

A ideia é estudar a magnetosfera1 da Terra nas suas mais variadas formas. O projeto específico que me vai levar a estudar as auroras é um pequeno projeto à parte, mas construído sobre o financiamento e a colaboração do MAPAT.

Cientificamente, o que vamos fazer é o seguinte: Existe um campo magnético da Terra e com dois polos, que nós associamos ao polo norte e ao polo sul. No entanto os polos magnéticos não coincidem com os polos geográficos. Nos últimos trinta anos, o polo norte magnético desviou-se de mais cerca de 1000 quilómetros em relação ao polo norte geográfico2.

Radar da rede EISCAT, em Svalbard, Spitzbergen Noruega
Radar da rede EISCAT em Svalbard, Noruega. Mais informação (em inglês). Créditos: Craig Heinselman

O que nós queremos estudar é esse desvio, que implicações é que ele tem, e queremos também perceber como é que esse desvio se reflete nas auroras, como é que as auroras têm acompanhado o desvio do campo magnético.

Porque as auroras são sempre mais intensas perto dos polos, pois aí as linhas do campo magnético da Terra são verticais, e as partículas que vêm do vento solar e do espaço – a que chamamos meteorologia espacial – conseguem ter por onde entrar na atmosfera da Terra e produzir aquele espetáculo de luzes.

“No projeto em que vou participar vamos fazer os gráficos para as diferentes auroras e tentar detetá-las automaticamente mal se recebam dados dos radares, para conseguirmos perceber como é que o desvio do polo norte magnético tem sido feito.”
Filipa Barros

Portanto, nós queremos perceber as implicações do desvio do campo magnético da Terra. Há implicações turísticas, por exemplo, como seja antecipar a intensidade que terão as auroras em Svalbard daqui a uns anos. Mas há também o problema da geolocalização.

Imaginemos um navio que usa uma bússola para se orientar. Se estiver a apontar para o polo magnético, que é o que as bússolas fazem, temos um desvio perto dos polos que já é significativo, e que pode implicar haver um reajuste dos sistemas de navegação.

 

Então as auroras boreais também vão mudando de localização ao longo do tempo por causa dessa deriva do polo magnético?

Sim, mas não só por isso. Também dependem do vento solar e das tempestades solares, mas dependem muito de onde está localizado o polo magnético.

 

E sabe-se porque é que o polo magnético vai mudando de posição?

Temos um dipolo magnético dentro da Terra, que é cíclico, mas ainda não se sabe bem como funciona. É ele que vai fazendo estes desvios. A própria rotação da Terra também tem alguma implicação.

De que forma é que este trabalho tem a ver com a tua investigação sobre o Sol e a meteorologia espacial?

As auroras são causadas pelas interações com o vento solar. O vento solar traz partículas carregadas eletricamente que interagem com a atmosfera da Terra, e portanto a aurora é uma manifestação desta atividade do Sol e das tempestades solares.

Apesar de termos observações do Sol – com sondas espaciais como o Parker Solar Probe, e o Solar Orbiter, que nos dão uma vista bastante boa do que acontece no Sol – perceber esta relação entre o que acontece no Sol e o que acaba por chegar à Terra e interagir connosco é crucial para entendermos o tipo de impactos que têm na nossa vida aqui. Fazer esta correlação é extremamente importante.

Auroras na Islândia.
Auroras na Islândia. Fotografia de ganhou o terceiro lugar na competição de astrofotografia da União Astronómica Internacional em 2021. Créditos: Emmanuele Balboni/IAU OAE

 

Especificamente, que trabalho vais fazer em Svalbard?

O meu trabalho será olhar para os últimos 30 anos de dados que temos disponíveis nos radares, focando-nos mais no último ciclo solar, portanto, nos últimos onze anos.

Os dados vêm de uma rede de radares chamada EISCAT. Existem várias antenas espalhadas pela Finlândia, Noruega e Suécia. Aquele com que eu vou trabalhar principalmente é o radar de Svalbard, mas também com o que Tromsø. Trabalham numa frequência de 500 mega-hertz e medem perfis de densidade, temperatura e velocidade de eletrões e iões. Esta densidade é a que usamos para fazer os gráficos das auroras no céu noturno, acima dos 100 quilómetros de altitude.

“Ir para um sítio onde nunca sonhei ter a possibilidade de ir, e acabar por estudar fenómenos que só acontecem em regiões tão extremas. Estive a preparar-me nestes meses fisicamente para ir, e mentalmente também, mas acho que isso é sempre mais difícil.”
Filipa Barros

No projeto em que vou participar vamos fazer os gráficos para as diferentes auroras e tentar detetá-las automaticamente mal se recebam dados dos radares, para conseguirmos perceber como é que o desvio do polo norte magnético tem sido feito. Vamos olhar para as várias imagens e fazer um estudo estatístico do que tem acontecido ao longo destes anos.

Neste momento o que se faz é olhar para a imagem e um especialista diz se se trata de uma aurora ou não, porque existem outros fenómenos que podem também surgir no céu. A nossa ideia é saber quando os especialistas concordam que os dados do radar são a assinatura de uma aurora, criar uma base de dados com estes trinta anos que temos para trás, e treinar um modelo de aprendizagem automática que consiga detetar e perceber quando começa e acaba a aurora.

 

Isso significa que não basta olhar para o céu, ver umas luzes e dizer que é uma aurora. É mais complicado do que isso.

Sim, é mais complicado. E não só por causa disso, porque não estamos só a olhar para as bonitas luzes no céu noturno, estamos a olhar para os valores da densidade dos eletrões num certa altitude na atmosfera. Podem ocorrer emissões dos eletrões sem necessariamente vermos as luzes no céu.

Como estão a correr os preparativos para a viagem? É uma região desafiante, embora os primeiros tempos não devam ser difíceis, porque agora é verão.

É verão, sim, e infelizmente por causa das alterações climáticas, a temperatura em Svalbard está bastante amena. Estão 14 graus, o que é gravíssimo.

Vista do escritório na Universidade de Svalbard
Vista do escritório na Universidade de Svalbard.
© Filipa Barros

Eu já tenho algum equipamento para o inverno, porque vivi um ano em Munique, onde é frequente a temperatura descer aos -10 graus. Não tenho ainda equipamento para invernos polares, mas eu estarei lá só durante o outono polar, em que se prevê que as temperaturas cheguem aos -20 graus.

Também levo o meu registo criminal, porque teremos treino de armas, por causa do risco de contacto com ursos polares naquela região, que são em maior número do que as pessoas.

 

E levas a máquina fotográfica? Vais tirar fotografias às auroras?

Espero que sim. Nada é muito certo porque a temporada das auroras começa em outubro. A noite polar começa nessa altura.

 

O que te entusiasma mais nesta estadia de trabalho em Svalbard?

Penso que é o ambiente extremo. Ir para um sítio onde nunca sonhei ter a possibilidade de ir, e acabar por estudar fenómenos que só acontecem em regiões tão extremas. Estive a preparar-me nestes meses fisicamente para ir, e mentalmente também, mas acho que isso é sempre mais difícil.

 

Como é que te tens preparado fisicamente?

Tenho treinado cinco vezes por semana, e eu também sou bombeira voluntária, numa corporação perto de casa, e portanto faço preparativos para lidar com os fogos nesta altura do ano, o que só por si já implica uma boa condição física.

Quero ter um mínimo de preparação física antes de ir para Svalbard, para me sentir segura, especialmente se quiser aproveitar expedições de montanhismo nos glaciares.


Notas

  1. O campo magnético da Terra é gerado pelo movimento de metais (sobretudo ferro) no estado líquido, no núcleo externo do planeta. O campo magnético atua como um íman, com dois polos opostos. O campo magnético não é estável. Cientistas utilizam instrumentos para medir e prever as flutuações temporais do magnetismo terrestre. A interação entre o campo magnético terrestre e partículas carregadas que existem no espaço (como as provenientes do Sol) gera a magnetosfera, uma envolvente protetora da Terra que desvia partículas energéticas que seriam prejudiciais à vida na superfície do nosso planeta. Perturbações no Sol podem alterar a forma da magnetosfera. A interação entre o vento solar e o campo magnético da Terra é objeto de estudo da meteorologia espacial. 
  2. Atualmente, o eixo do dipolo magnético terrestre está afastado mais de 9º em relação ao eixo de rotação da Terra. O estudo mais recente indica que o polo norte magnético se está a deslocar 55 quilómetros por ano na direção nor-noroeste. As auroras ocorrem com maior incidência numa banda entre 15º e 25º de latitude geomagnética (por oposição à latitude geográfica) em volta, ou centrada, no polo magnético (norte ou sul). Fonte (adaptado): National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), no EUA, em https://www.ncei.noaa.gov/products/wandering-geomagnetic-poles