Dentro dos locais mais frios do Universo

Região da nossa galáxia, Via Láctea, que se estende pelas constelações de Ofiúco (Serpentário), Sagitário e Escorpião.

Região da nossa galáxia, Via Láctea, que se estende pelas constelações de Ofiúco (Serpentário), Sagitário e Escorpião. As manchas escuras são nebulosas frias e opacas. Créditos: ESO/S. Guisard (www.eso.org/~sguisard)

As nuvens moleculares escuras são nebulosas que não emitem nem refletem luz visível. Dentro delas encontramos um laboratório químico surpreendente, que até produz moléculas de álcool.

Artigo de Pedro Palmeirim, João Lin Yun e Sérgio Pereira1, publicado no âmbito da colaboração entre o Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e a National Geographic Portugal.


No final do século XVIII, o astrónomo alemão William Herschel, que mais tarde adotou a nacionalidade britânica, apontou um telescópio na direção da constelação do Escorpião. Reparou então numa região escura, que contrastava com o brilho das estrelas no céu em redor. Hoje sabemos que estes aparentes buracos no céu fazem parte do meio interestelar, isto é, o material que existe no espaço entre as estrelas. 

O espaço entre as estrelas é constituído por gás muito rarefeito, num ambiente de densidade tão baixa que cada partícula tem direito a um decímetro cúbico (um litro) de espaço todo só para si!

O que Herschel viu não foi um buraco entre as estrelas, mas uma nuvem composta por gás e poeira, suficientemente fria e densa para que os átomos se combinem em moléculas. Estas nuvens são, por isso, designadas nuvens moleculares. São nada menos do que os lugares onde nascem as estrelas e o seu respectivo cortejo de planetas.

Grande parte do espaço entre as estrelas – o meio interestelar – é, no entanto, constituído por gás muito rarefeito, num ambiente de densidade tão baixa que cada partícula tem direito a um decímetro cúbico (um litro) de espaço todo só para si! 

Nestas condições é extremamente difícil ocorrerem reações químicas. Como resultado, o meio interestelar mais rarefeito é muito pobre quanto à diversidade e complexidade dos compostos químicos que nele existem. O hidrogénio molecular (dois átomos de hidrogénio ligados) é praticamente a única molécula. Existe também muito hélio, mas este é um gás inerte, o que significa que os seus átomos raramente formam ligações químicas. 

Nebulosa da Águia, onde se observam tanto extensas regiões de emissão de luz vermelha, emitida pelos átomos de hidrogénio, como partes escuras, de gás e poeira, que são berços de estrelas.
Nebulosa da Águia, onde se observam tanto extensas regiões de emissão de luz vermelha, emitida pelos átomos de hidrogénio, como partes escuras, de gás e poeira, que são berços de estrelas. Créditos: ESO

Nebulosas escuras e nebulosas coloridas

A luz das estrelas, ou seja, a sua radiação, aquece continuamente o gás do meio interestelar. Grande parte dele está portanto a altas temperaturas, a dezenas de milhares de graus Celsius. Essa mesma luz interage com os átomos e arranca-lhes parte dos eletrões mais exteriores. A um átomo com um défice de eletrões dá-se o nome de ião. Diz-se então que este gás interestelar está ionizado.

No momento em que se formam, os grãos de poeira têm a dimensão de um milésimo de milímetro (um micrómetro) e são inicialmente compostos por carbono ou por silicatos (ligações de silício com oxigénio).

Quando os átomos capturam de novo eletrões, estes saltam entre os níveis de energia do átomo e, ao fazê-lo, libertam luz. Um exemplo é a luz vermelha que confere a cor vermelha a certas nebulosas, chamadas nebulosas de emissão. É denominada emissão H alfa e é responsável pela cor da nebulosa da Águia, por exemplo (ver a imagem 2), na constelação da Serpente.

Quando o gás se limita a refletir a luz de estrelas vizinhas, dizemos que temos uma nebulosa de reflexão, que normalmente tem cor azulada. Esta cor deve-se às partículas sólidas, extremamente pequenas, serem mais eficientes a refletir os comprimentos de onda de luz mais curtos. Um exemplo é parte da Nebulosa Trífida, na constelação do Sagitário (ver a imagem 3). 

Nebulosa Trífida, na constelação do Sagitário
Nebulosa Trífida, na constelação do Sagitário é um exemplar de três tipos de nebulosa: emissão (parte vermelha), reflexão (parte azul) e escura (filamentos opacos).

Créditos: ESO

Pelo contrário, as nuvens moleculares, como aquela que William Herschel viu, são regiões escuras, consideravelmente mais densas do que a generalidade do meio interestelar, e são extremamente frias. São de facto dos locais mais frios do Universo, com temperaturas a rondar apenas os dez graus acima do zero absoluto, o que, na escala Celsius, são 263 graus negativos.

Embora muito mais compactas do que o gás quente ionizado, as nuvens moleculares têm ainda assim uma densidade extremamente baixa, nada comparável com as atmosferas dos planetas, como a da Terra. Na verdade, o ambiente nesses locais seria considerado um vácuo perfeito para a realização de experiências na Terra que precisam de condições de vácuo. Estamos a falar de cerca de cem mil partículas de gás contidas num centímetro cúbico, quando para a atmosfera da Terra falamos da ordem de triliões de partículas. Sobra portanto ainda muito espaço vazio entre os átomos, e as reações químicas entre eles são pouco eficazes e com uma baixa produção de moléculas. 

A nebulosa escura designada Barnard 68 é um dos locais mais frios do Universo
A nebulosa escura designada Barnard 68 é um dos locais mais frios do Universo e exemplo de uma região de gás e poeiras opaca e densa (ainda assim muito rarefeita por comparação com a atmosfera da Terra). No céu, encontra-se na constelação de Ofiúco (Serpentário).
Créditos: ESO

 

 

Laboratórios de química cósmica

Os grãos de poeira, que são partículas sólidas, ainda que representem apenas um por cento da massa total das nuvens moleculares, atuam como escudo contra a radiação externa proveniente das estrelas. Os grãos de poeira absorvem esta radiação e evitam que ela destrua as ligações moleculares existentes. As superfícies dos grãos funcionam também como autênticos laboratórios químicos, onde mais moléculas se podem formar. Esta poeira “mágica” é assim essencial para formar estrelas e para a química do Universo. Mas de onde terá vindo esta poeira?

Os grãos de poeira têm origem no final da vida das estrelas e são cruciais para a formação de novas gerações destes astros. Tipicamente, formam-se nas camadas exteriores das estrelas quando estas, perto do final da sua vida, se expandem e arrefecem. Nesta fase, as estrelas tornam-se naquilo a que os astrofísicos chamam gigantes vermelhas. Este é o processo pelo qual o Sol passará dentro de aproximadamente cinco mil milhões de anos.

Num gás, a energia libertada pelas moléculas depende das estruturas geométricas dessas moléculas – quanto mais assimétrica ela for, mais provável é ela libertar energia, o que facilita a sua identificação.

As poeiras também se formam como consequência de explosões de estrelas. Estas só ocorrem em estrelas com mais massa do que o Sol, e mais raras. Essas explosões finais, em que a estrela lança para o espaço envolvente – o tal meio interestelar – grande parte do seu material, chamam-se supernovas (no céu aparecem como uma “nova” estrela, superbrilhante).

No momento em que se formam, os grãos de poeira têm a dimensão de um milésimo de milímetro (um micrómetro) e são inicialmente compostos por carbono ou por silicatos (ligações de silício com oxigénio). Entretanto, vão acumulando outros átomos, de entre os elementos mais abundantes no meio interestelar, como o hidrogénio, o oxigénio e o nitrogénio.

Quando se encontram no ambiente frio das nuvens moleculares, os grãos de poeira cobrem-se de camadas de gelos (por exemplo, água gelada, metano, dióxido de carbono, amónia, também gelados). A superfície irregular destes grãos facilita a captação de átomos, que assim poderão estabelecer ligações químicas e fabricar novas moléculas, mais complexas.

Estas moléculas serão maioritariamente de hidrogénio, já que é o elemento que existe em maior abundância, mas formam-se também moléculas constituídas por átomos de carbono ligados entre si e a átomos de hidrogénio. Estas pertencem ao que, em geral, se designa por compostos orgânicos simples, pois encontramo-las também em processos químicos associados à vida na Terra.

Pormenor da Nebulosa da Águia, observado à esquerda, na luz visível, pelo Telescópio Espacial Hubble, e à direita, na luz infravermelha, pelo Telescópio Espacial James Webb.
Pormenor da Nebulosa da Águia, observado à esquerda, na luz visível, pelo Telescópio Espacial Hubble, e à direita, na luz infravermelha, pelo Telescópio Espacial James Webb. Na imagem da direita, as nuvens de poeira, formada no antigo meio interestelar frio, são menos opacas e é possível perscrutar o seu interior e encontrar aí estrelas em gestação. A luz de estrelas jovens e intensas na vizinhança ilumina e vai ‘evaporando’ as partículas de poeira, desalojando as novas estrelas do seu casulo.
Créditos: NASA, ESA, CSA, STScI, Hubble Heritage Project (STScI, AURA)

Inventário de moléculas

Como é que os astrofísicos detectam moléculas e medem as suas quantidades nas nebulosas moleculares? É possível identificar os átomos pela “subida e descida” dos eletrões entre os níveis de energia que podem ocupar em volta do núcleo. Como dissemos, estas subidas e descidas são acompanhadas por absorção ou emissão de luz, respetivamente, luz esta que conseguimos detetar a partir de observatórios na Terra.

Cada tipo de átomo tem uma assinatura própria quanto ao número de eletrões e respetivos níveis de energia que podem ocupar, e por isso os astrofísicos conseguem identificar e quantificar, na luz que os telescópios recebem da nebulosa, a variedade de átomos que existem nela.

Não é ainda claro se estas moléculas conseguem sobreviver à formação de sistemas planetários, conservando-se, por exemplo, nos asteroides ou outros pequenos corpos frios.

No caso das moléculas, os seus níveis de energia são criados através de vários mecanismos mais complexos, como a vibração ou a rotação da molécula. Num gás, a energia libertada pelas moléculas depende das estruturas geométricas dessas moléculas – quanto mais assimétrica ela for, mais provável é ela libertar energia, o que facilita a sua identificação.

Embora a molécula de hidrogénio, constituída por dois átomos de hidrogénio a partilharem os seus eletrões, seja de longe a mais abundante, a sua detecção é extremamente difícil porque ela é simétrica. Os astrofísicos conseguem reconhecer a sua presença e medir a sua quantidade através da observação de moléculas de monóxido de carbono. Estas moléculas são compostas por um átomo de carbono e outro de oxigénio, e são mais fáceis de detetar porque são assimétricas. Por outro lado, sabemos que existem numa proporção de uma para cada dez mil moléculas de hidrogénio. 

Missão espacial OSIRIS-REx, da NASA
As missões espaciais OSIRIS-REx (na imagem), da NASA, e Hayabusa2, da agência espacial japonesa (JAXA), recolheram amostras de material de asteroides, trazendo-as depois para a Terra para serem analisadas. A eventual presença de certos compostos químicos poderá ligar a nebulosa que originou o Sistema Solar ao surgimento da vida na Terra.
Créditos: NASA’s Conceptual Image Lab

A deteção destas e de outras moléculas exige que observemos as nebulosas, não com telescópios convencionais, na luz visível, mas com radiotelescópios. A radiação que elas emitem é de menor energia do que a libertada pelos átomos, e está na gama das frequências rádio do espectro eletromagnético. 

Deste modo, foram detetadas milhares de moléculas diferentes, na sua grande maioria moléculas orgânicas. Para além do hidrogénio, são constituídas por carbono, oxigénio e nitrogénio, os elementos químicos mais abundantes de entre os que são produzidos no interior da maioria das estrelas.

Exemplos de moléculas que se detetaram nas nuvens escuras são o monóxido de carbono (CO), monossulfureto de carbono (CS), cianeto de hidrogénio (HCN), amoníaco (NH3), formaldeído ou metanal (H2CO), e também moléculas de substâncias mais complexas como o álcool etílico ou etanol (CH3CH2OH), ou da família dos aminoácidos. De entre os aminoácidos, um subgrupo é essencial para a síntese das proteínas nas formas de vida que conhecemos na Terra. 

Não é ainda claro se estas moléculas conseguem sobreviver à formação de sistemas planetários, conservando-se, por exemplo, nos asteroides ou outros pequenos corpos frios. Em todo o caso, a sua descoberta nas nuvens moleculares escuras, um dos locais mais frios do Universo, revela que os tijolos da vida como a conhecemos são mais comuns do que inicialmente se pensava.

Disponível também no website da National Geographic Portugal »

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Notas

  1. Pedro Palmeirim é doutorado em Astronomia e Astrofísica pela Universidade de Diderot 7 em Paris. Foi investigador no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e professor convidado na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto até 2022.
    João Lin Yun é investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. É doutorado em Astronomia e Física pela Universidade de Boston.
    Sérgio Pereira é mestre em Comunicação de Ciência e comunicador de ciência no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA).