O que esconde uma bola de gelo? Eis Europa.

Europa, uma das luas de Júpiter.

Europa, uma das luas de Júpiter. Créditos da imagem: NASA/JPL/SETI Institute

Artigo em parceria com a National Geographic Portugal

Uma das quatro maiores luas de Júpiter, Europa, é uma bola de gelo, mas talvez não seja tão gelada assim, e possa servir de casa a estranhas formas de vida.

Por José Silva1

O Sistema Solar, este ínfimo lugar no Universo, é a casa de mundos muito distintos, apesar de terem todos surgido de uma mesma nuvem primordial de gás e poeira. Ainda assim, dos oceanos da Terra aos gêiseres de gelo de Tritão, lua de Neptuno, há algo comum entre muitos deles.

Água por toda a parte!

A nossa casa no Sistema Solar, a Terra, tem a peculiaridade de ter água líquida em permanência à superfície, algo crucial para a vida como a conhecemos. Na verdade, é o único corpo do Sistema Solar que se conhece com esta característica. No entanto, a água é relativamente comum no nosso sistema planetário, embora noutros estados físicos. É mesmo um dos elementos dominantes na formação de muitos corpos para lá da cintura de asteroides que existe entre Marte e Júpiter.

Este efeito de maré comprime e estica este satélite natural de Júpiter como uma borracha, o que provoca uma enorme fricção entre os materiais no seu interior. Toda esta fricção liberta energia, que irá aquecer o interior da lua.

Um dos exemplos mais famosos são os anéis de Saturno, que refletem muita luz solar devido precisamente aos milhões de fragmentos feitos sobretudo de gelo de água. São também exemplos um grande número de luas dos gigantes gasosos Júpiter e Saturno e dos gigantes gelados Úrano e Neptuno. Uma delas é Europa, em órbita de Júpiter. A quantidade total de água que se estima existir nesta lua será entre duas a três vezes mais do que toda a água de oceanos e lagos na Terra.

O nome Europa, nome também de um continente terrestre e o de uma figura da mitologia grega, foi atribuído por Galileu Galilei quando descobriu esta e mais três luas de Júpiter através do seu telescópio, em 1610. Se estivéssemos na superfície de Europa, veríamos uma paisagem gelada sem fim, com poucos relevos, pois trata-se do corpo sólido mais ‘polido’ do Sistema Solar.

De facto, esta lua não tem grandes elevações, nem crateras profundas. É assim em parte porque a sua superfície é bastante jovem, ou seja, é regularmente reciclada por material expelido do interior – um vulcanismo dos gelos, ou criovulcanismo. Por outro lado, como o gelo não é completamente rígido mas mantém alguma viscosidade, a superfície tem tendência a nivelar-se com o tempo. 

O gelo de água superficial está longe de ser o material quebradiço que testemunhamos na Terra, mas sim autêntica rocha sólida e densa.

No entanto, a superfície desta lua de Júpiter mostra evidência de atividade geológica pelo grande número de falhas e terreno acidentado que podemos ver na imagem em baixo. Esta atividade é provocada por um efeito semelhante ao da interação entre a Terra e a Lua, o efeito de maré, mas muito mais intenso. Júpiter tem mais de trezentas vezes a massa da Terra, e Europa está apenas cerca de duas vezes mais longe do que a Lua está do nosso planeta.

Este efeito de maré comprime e estica aquele satélite natural de Júpiter como uma borracha, o que provoca uma enorme fricção entre os materiais no seu interior. Toda esta fricção liberta energia, que irá aquecer o interior da lua joviana. Esses movimentos são cíclicos devido ao período orbital em torno de Júpiter, a que se acrescenta uma sincronização muito particular com os períodos orbitais das luas irmãs Io e Ganimedes. 

Esta imagem da superfície de Europa, obtida pela sonda Galileo, da NASA, mostra em detalhe duas zonas diferentes na camada de gelo.
Esta imagem da superfície de Europa, obtida pela sonda Galileo, da NASA, mostra em detalhe duas zonas diferentes na camada de gelo. Uma delas é mais atravessada por riscas, que serão essencialmente riftes e fissuras onde se pensa que gelo do interior chega à superfície. Por interação com partículas energéticas provenientes da zona de radiação de Júpiter, esta parte da superfície adquire tons mais escuros. No canto inferior esquerdo vemos terreno mais rugoso e caótico, possivelmente onde a camada de gelo é ligeiramente mais fina e, por isso, sucessivamente quebrada pela atividade geológica gerada por efeitos de maré provocados por Júpiter.

Créditos: NASA/JPL-Caltech/ SETI Institute

O calor interno, que se pensa ser gerado pelo efeito de maré, e sobretudo a forma como Europa interage com o campo magnético de Júpiter, sugerem que muito provavelmente o gelo que vemos à superfície de Europa seja apenas uma camada fina. Ronda talvez os 20 quilómetros de espessura, em média, mas segundo alguns estudos pode ter só seis quilómetros em certos locais.

Sob esta camada esconder-se-á um imenso oceano de água líquida. Ainda assim, este oceano mal representa um por cento do raio da lua, apesar de se estender até cerca de 100 quilómetros de profundidade. Na Terra, a maior profundidade oceânica é de 11 quilómetros, mas sendo Europa um corpo muito mais pequeno, a temperatura e as pressões podem assemelhar-se às que encontramos nas fossas mais profundas dos oceanos terrestres.

Uma lua gelada, mas não morta

É muito possível que seja o aquecimento interno, combinado com a eventual existência de um oceano global, o que provocou as várias formações geológicas na camada de gelo superficial que a sonda Galileo, da NASA, observou no final dos anos 90. Destacam-se linhas que cortam a superfície e que podem estender-se por centenas de quilómetros. Parecem-se com os riftes nos fundos oceânicos terrestres, onde placas da crusta se estão a afastar, com consequente elevação de magma. Em Europa, é gelo que brota por estas falhas até à superfície.

A vida, para prosperar, precisa de tempo. Ainda que existam hoje em Europa água líquida, compostos orgânicos e energia química, elementos fundamentais para a vida, esta precisa de tempo suficiente durante o qual permaneçam estas condições favoráveis.

Num mundo tão diferente do nosso, são variados os tipos de gelo de água que aqui podemos encontrar. Tendo em conta as baixíssimas temperaturas (aproximadamente -170 graus Celsius) e pressões próximo da superfície de 10-12 bar (sensivelmente 1 bilião de vezes mais rarefeito que a atmosfera terrestre à superfície), o gelo de água superficial está longe de ser o material quebradiço que testemunhamos no nosso planeta, mas sim autêntica rocha sólida e densa.

A maiores profundidades, este gelo está sujeito a grandes pressões e temperaturas mais elevadas devido às tais fricções provocadas pelos efeitos de maré. Temos então um gelo mais “quente” e maleável, que pode escorregar, tal como a lava terrestre, por entre as falhas até à superfície, despejando gelo “fresco” e reciclando a superfície de Europa. 

Este será um dos vários mecanismos possíveis através dos quais esta lua de Júpiter se mostra geologicamente ativa e, por isso, apresenta um número muito reduzido de crateras se compararmos com outros corpos do Sistema Solar, como Mercúrio, ou mesmo Calisto, outra lua de Júpiter. Vestígios de impactos antigos foram sendo regularmente apagados pelos derrames de gelo vindos do interior. Com a cobertura a ser constantemente reciclada e reconstruída, formaram-se ao longo de milhares ou milhões de anos estruturas onde o gelo superior se quebrou em vários pedaços, constituindo uma espécie de puzzle.

Bichos de um filme de Ridley Scott? Esperemos que não, mas bactérias talvez…

Devido à composição química de Europa e à hipotética presença de um oceano global profundo, possivelmente aquecido no seu interior, este satélite natural de Júpiter é um dos objectos mais promissores para a procura de vida fora da Terra. Caso ela exista aqui, poderá ser na forma de microorganismos adaptados à vida na escuridão, próximos do calor que existirá junto ao fundo desse oceano global. Talvez se assemelhem aos que já foram descobertos perto de fontes hidrotermais marinhas e nas lamas no fundo de fossas abissais na Terra. 

Uma fonte hidrotermal no fundo oceânico terrestre que liberta uma grande quantidade de compostos químicos e que são uma fonte de alimento para vários microorganismos.
Uma fonte hidrotermal no fundo oceânico terrestre que liberta uma grande quantidade de compostos químicos e que são uma fonte de alimento para vários microorganismos. Estes formam a base da cadeia alimentar dos ecossistemas que se desenvolvem nestas fossas abissais. Fontes hidrotermais semelhantes poderão existir no fundo do oceano que talvez se esconda por baixo da camada de gelo de Europa, nutrindo hipotéticas formas de vida que poderão aqui florescer sem a luz do Sol.

Créditos: Submarine Ring of Fire 2014 – Ironman, NOAA/PMEL, NSF

No entanto, para que tal vida se tenha desenvolvido, há outros fatores a ter em conta. Europa está agora numa ressonância orbital, uma espécie de dança cíclica com as outras grandes luas de Júpiter, e que lhe confere o importante efeito de maré que, como vimos, deverá aquecer o seu interior. Não existem porém evidências de que essa coreografia tenha tido sempre o atual padrão estável e regular desde que a lua se formou.

Portanto, não é certo que as condições que poderão atualmente permitir este oceano global tenham existido no passado. Mas a vida, para prosperar, precisa de tempo. Ainda que existam hoje em Europa água líquida, compostos orgânicos e energia química, elementos fundamentais para a vida, esta precisa de tempo suficiente durante o qual permaneçam estas condições favoráveis.

Para tentar resolver algumas destas questões e explorar este mundo gelado em volta de Júpiter, tanto a NASA como a Agência Espacial Europeia (ESA) têm já missões espaciais planeadas, como as missões Europa Clipper e JUICE, respetivamente. A missão norte-americana, prevista para esta década mas ainda sem data de lançamento definida, irá estudar em detalhe apenas esta lua de Júpiter, com várias passagens muito próximas. 

Conceção artística da sonda JUICE
Conceção artística da sonda JUICE, vendo-se os seus painéis, os maiores que alguma vez voaram numa missão interplanetária. A área é essencial para gerar energia suficiente para os instrumentos científicos a uma tal distância do Sol. JUICE irá estudar a atmosfera turbulenta de Júpiter e a sua magnetosfera, assim como as luas Ganimedes, Europa e Calisto. Há indícios de que todas estas luas tenham oceanos de água líquida sob a crusta gelada, e esta missão poderá fornecer pistas sobre a eventual existência de ambientes habitáveis.

Créditos: Spacecraft: ESA/ATG medialab; Jupiter: NASA/ESA/J. Nichols (University of Leicester); Ganymede: NASA/JPL; Io: NASA/JPL/University of Arizona; Callisto and Europa: NASA/JPL/DLR

A missão europeia terá por objetivo principal explorar um mundo vizinho e a maior lua do Sistema Solar, Ganimedes, mas irá aproveitar para estudar o próprio planeta Júpiter bem como duas das outras luas descobertas por Galileu: Calisto e, claro, Europa. Esta sonda espacial foi lançada recentemente a 14 de Abril, 2023, com data prevista de chegada em 2031.

Até lá podemos todos sonhar com as estranhas formas de vida que poderão existir num distante oceano, e que ele venha a ser o primeiro lugar a provar-nos que não estamos sozinhos no Universo.

Disponível sob licença de reutilização Creative Commons cc-by-sa


  1. José Eduardo Silva é doutorado em Astronomia e Astrofísica pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa), tendo-se especializado em atmosferas de planetas do Sistema Solar no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA). É atualmente investigador de pós-doutoramento no Institute for Basic Science em Daejeon, na Coreia do Sul e também colaborador do IA. Mantém um interesse persistente por todos os aspetos que envolvem os nossos mundos vizinhos, em particular, a sua grande diversidade, no nosso pequeno pedaço de Cosmos.