Lentas caravanas de estrelas rodeiam as galáxias como volutas ornamentais. Estavam escondidas no ruído de fundo das imagens,… até à nova geração de telescópios.
Artigo de Fernando Buitrago e Sérgio Pereira1 publicado no âmbito de uma colaboração entre o Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e a National Geographic Portugal.
No Universo tudo evolui movido pela força da gravidade. Não são só as estrelas, o gás e a poeira que sentem esta atração e assim se juntam em galáxias. Também cada galáxia é atraída por todas as demais.
Este é o conceito de universo hierárquico: todas as acumulações de matéria sentem a força gravítica de todas as outras, quer as de matéria visível, quer as de matéria que não vemos, a matéria escura. A matéria escura é o alicerce do Universo e um dos seus maiores enigmas. Não sabemos ainda o que é, mas explica por que as galáxias – essas “nuvens” de estrelas, gás, poeira e matéria escura ligados pela força da gravidade – são estruturas estáveis e não desaparecem com o tempo.
Por causa da grande distância a que as outras galáxias estão da nossa Via Láctea, não conseguimos individualizar as inúmeras estrelas que as compõem. O seu conjunto aparece-nos assim indistinto, como uma luz nebulosa. Mas as galáxias não são, de todo, corpos rígidos.
Dançarão uma em redor da outra, irão cruzar-se e passar uma através da outra várias vezes, num bailado cósmico. Nesse bailado, os seus discos e braços espirais vão sendo torcidos e desfeitos aos poucos.
Na sua aparente imobilidade, elas estão sempre em movimento, e não só por causa da expansão do Universo, que começou no momento do Big Bang. A força da gravidade obriga-as a estarem sempre a interagir entre si, mesmo à distância. Quando enfim se aproximam o bastante, efetuam como que uma dança, e durante essa dança vão perdendo a sua forma a pouco e pouco, ao longo de milhões de anos.
O último estágio da atração entre duas ou mais galáxias é a sua fusão. No final da dança, as estrelas das galáxias em interação, assim como o gás, a poeira, os planetas, etc., vão-se misturar e combinar-se numa única galáxia. Temos na memória as imagens destes processos através das fotografias belíssimas captadas pelo telescópio espacial Hubble e também agora pelo James Webb.
Por que usamos a palavra ‘fusão’ em vez de ‘choque’? Como acontece este processo?
Um bailado fantástico
Existe tanto espaço entre as estrelas individuais numa galáxia – e o resto da matéria que a compõe é tão difusa – que em verdade, em nenhum momento as galáxias se tocam. Elas atravessam uma pela outra. Não é um choque como dois carros na estrada quando embatem. É tão provável duas estrelas colidirem como duas moscas sozinhas num estádio de futebol. Seria mais correto pensar na saudação entre dois fantasmas em que um passa através do outro.
Já descobrimos que a nossa galáxia, a Via Láctea, se está a aproximar da vizinha galáxia de Andrómeda, que é maior do que a nossa e está (ainda) a dois milhões de anos-luz. Dentro de cinco mil milhões de anos (mais ou menos quando o combustível nuclear do Sol terminar), as duas galáxias irão confluir no mesmo local do espaço. Começará a sua fusão.
Dançarão uma em redor da outra, irão cruzar-se e passar uma através da outra várias vezes, num bailado cósmico. Nesse bailado, os seus discos e braços espirais vão sendo torcidos e desfeitos aos poucos. Enfim, estas duas galáxias serão uma única galáxia maior. O Sol, quando chegar à sua terceira idade, terá então por companhia estrelas que hoje estão vinte vezes mais longe do que o diâmetro atual da Via Láctea.
Veja também o vídeoO que se esconde num céu escuroO que se esconde para lá do limiar da luz, nas zonas mais escuras do céu? Registo vídeo da sessão online com Fernando Buitrago, da Universidade de Valhadolid e do IA, a 30 de janeiro de 2021. |
Mas a galáxia resultante será bem diferente das duas galáxias espirais que lhe deram origem. Os planos dos discos galácticos de Andrómeda e da Via Láctea irão perder-se, pois a fusão gravitacional irá “baralhar” os movimentos das estrelas. A nova galáxia terá estrelas com movimentos em praticamente todas as direções do espaço. O conjunto terminará como uma “bola” de estrelas, a que se dá o nome de galáxia elíptica. Em volta, como testemunho desse longo namoro, ficam então esteiras de estrelas arrancadas durante o processo às suas respectivas galáxias.
Nos casos em que uma das galáxias é muito mais massiva do que a outra, as esteiras de estrelas arrancadas durante a interação serão mais evidentes. Elas formam-se quando as estrelas da galáxia satélite (a galáxia menor) são roubadas e espalhadas pela galáxia principal.
Antigamente estas zonas pareciam ser vazias. Era difícil com os instrumentos de então detetar aí alguma coisa para lá do ruído de fundo das imagens.
Se vemos algo saliente ou uma protuberância de luz, chamamos-lhe uma “cauda de maré”, pelo paralelismo com as forças entre a Terra e a Lua, que criam as marés. Se cobre uma grande área, chamamos-lhe um “leque de estrelas”. Se liga duas galáxias que, embora a fusionarem-se, têm formas ainda definidas e independentes, recebe o nome de “ponte”. E assim continua a nossa coleção de nomes para a aparência destas estruturas.
Pode ser que a denominação mais estranha seja “conchas”, que são carapaças nas partes externas das galáxias elípticas. A sua origem está relacionada com galáxias satélites que caíram numa trajetória apontada ao centro da galáxia massiva (veja-se a imagem de entrada deste artigo).
Os astrónomos estudam e nomeiam estas estruturas, não só por serem lindíssimas, mas pelo facto de a sua posição e ângulo, junto com a quantidade de matéria envolvida, nos informarem deste processo pelo qual as maiores galáxias se formam a partir das mais pequenas. Assim conseguimos inferir a intensidade do campo gravitacional produzido pela galáxia, e a partir daí quanta matéria – visível e invisível (matéria escura) – tem que existir nessa região do espaço para que a galáxia tenha a forma que tem.
Se calcularmos e lhe subtrairmos a quantidade que podemos atribuir à matéria visível, teremos assim uma estimativa da quantidade e distribuição da matéria escura. Esta informação é essencial para tentar desvendar o seu enigma. Só desvendando-o conseguiremos explicar por que as galáxias não são ilhas de luz efémeras e o Universo não se tornou ainda numa “sopa de estrelas”, sem essas belas estruturas que são as galáxias.
As estrelas desgarradas durante as danças galácticas fazem também com que as maiores galáxias atraiam e capturem mais estrelas e gás, e explicam assim como é que elas mudam a sua forma. Explicam também como é que as galáxias mais massivas eliminam muitas galáxias-satélite ténues que esperávamos encontrar, mas que até à data ninguém sabia por que ainda não as tínhamos observado.
Um tema pouco brilhante
Todos estes estudos estão englobados na astronomia de baixo brilho superficial. Nesta área de estudo os cientistas centram o seu interesse na luz quase impercetível que se estende em redor das zonas brilhantes das imagens.
Antigamente estas zonas pareciam ser vazias. Era difícil com os instrumentos de então detetar aí alguma coisa para lá do ruído de fundo das imagens. No entanto, hoje estão ao nosso alcance graças aos espetaculares desenvolvimentos na óptica dos telescópios e na sensibilidade dos sensores das suas câmaras fotográficas.
Munidos com estas novas tecnologias, uma nova geração de telescópios, vai agora observar as esteiras de estrelas na maior parte do Universo observável. É uma geração encabeçada pelo novo telescópio Euclid, da Agência Espacial Europeia (ESA), em que Portugal tem uma grande participação, o telescópio Vera C. Rubin, no Chile, e o futuro Nancy Roman Telescope, da NASA. São chamados telescópios sinópticos porque conseguem observar de uma só vez uma grande área do céu, e conseguem assim cumprir sistematicamente um programa de mapeamento do céu inteiro.
É tal a quantidade, tamanho e detalhe das imagens que estes telescópios sinópticos vão produzir que nenhum astrónomo ou equipa de astrónomos será capaz de as analisar em tempo útil. Estes novos telescópios estão a captar imagens multiplicadas por todo o céu e cada uma contém milhares de galáxias, somando centenas de gigabytes ou mesmo terabytes por noite.
As máquinas irão muito mais rapida e facilmente do que nós assinalar-nos que galáxias possuem esteiras de estrelas e onde é que elas estão. Por isso, em todos estes trabalhos, a inteligência artificial e a aprendizagem automática jogarão um papel capital.
Simulação do processo de acreção de duas galáxias até se formar uma única galáxia.
Créditos: © Copyright by Volker Springel/Max Planck Institute for Astrophysics (direitos reservados, publicado sob autorização do autor)
Como podemos ver, o futuro é muito brilhante para os estudos na astronomia de baixo brilho superficial. Os instrumentos mais modernos unidos às últimas técnicas de processamento de informação e aprendizagem automática produzirão uma revolução no nosso entendimento da relação entre as galáxias satélites e as suas companheiras muito massivas. Além disso, levando em conta os ingredientes que conseguimos ver, conheceremos também aqueles outros escondidos dos nossos olhos mas cuja gravidade podemos sentir.
Em consequência, obteremos um recenseamento da quantidade de matéria escura nestes sistemas e o mapa da sua distribuição através do Cosmos. Poderemos compará-lo com as nossas teorias e assim tentar compreender a natureza desta parte completamente esquiva e desconhecida da nossa casa-universo – os seus alicerces, a sua estrutura fundamental, o Universo invisível explicado pela luz da matéria visível.
Disponível sob licença de reutilização Creative Commons cc-by-sa
Também disponível no website da National Geographic Portugal »
Notas
- Fernando Buitrago, salmantino de nascimento e leiriense de coração, é um astrónomo que fez o seu doutoramento na Universidade de Nottingham, em Inglaterra e depois passou por Edimburgo (Escócia), Lisboa e, por último, Valladolid, onde agora é Distinto Investigador Sénior na universidade desta cidade. É colaborador externo do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e coordena o grupo de trabalho sobre Luz Difusa no Telescópio Espacial Euclid, da Agência Espacial Europeia.
Sérgio Pereira é comunicador de ciência no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) e mestre em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova de Lisboa, com especialização em jornalismo de revista na Universidade de Nottingham Trent, no Reino Unido.