Estrelas que brilham no tempo: Jerry Nelson

Jerry Nelson.

Jerry Nelson. Créditos: W. M. Keck Observatory

Astrofísico, mas com olhos de engenheiro, Jerry Nelson inventou uma forma de termos olhos cada vez maiores para observar o céu.

Ao longo da história da Astronomia, mulheres e homens contribuíram para o avanço desta ciência interpretando o que observavam no céu. Essas observações recorreram quase sempre a instrumentos que ampliam as capacidades do olho humano, instrumentos na Terra e, mais recentemente, também no Espaço.

A história de Jerry Nelson permite-nos sublinhar o facto de a Astronomia e a Astrofísica dependerem também muito daqueles que contribuíram para o desenvolvimento destes instrumentos e telescópios.

Formas de “apanhar” luz

Numa noite de céu limpo e num local afastado de fontes de luz, podemos ver muitas estrelas no céu e até a faixa leitosa a que chamamos Via Láctea. Porém, se os nossos olhos fossem bastante maiores, veríamos essas estrelas mais brilhantes e veríamos também muito mais estrelas. Conseguiríamos ver até as manchas difusas das nebulosas, e o centro da galáxia de Andrómeda muito mais vivo.

Estes foram os maiores telescópios ópticos do mundo durante quase três décadas. A partir daqui a construção de telescópios ópticos estagnou.

Para compreendermos esta ideia, imaginemos que fixamos o olhar numa estrela qualquer à escolha. Se dermos três passos para o lado, continuaremos a ver essa estrela. Se dermos mais três passos, ela continua ainda visível. Isto significa que a estrela está a emitir luz na direção desses três pontos de onde a observámos… e em muito mais direções. É como se “chovesse” luz do céu.

Utilizando esta analogia da chuva, se quisermos recolher água da chuva, poderemos utilizar um balde e esperar algum tempo até que ele se encha. Mas se tivermos um grande alguidar, que tem uma maior superfície exposta à chuva, no mesmo período de tempo obtemos muito mais água… ou seja, muito mais “luz”.

Luneta utilizada por Galileo Galilei
Luneta utilizada por Galileo Galilei.
Créditos: Museo Galileo
Telescópio do Observatório Astronómico de Lisboa.
Telescópio do Observatório Astronómico de Lisboa (OAL), de meados do século XIX.
Créditos: OAL.

Por esta razão, desde a luneta utilizada por Galileo Galilei foram sendo construídos instrumentos cada vez maiores, até ao telescópio do Observatório Yerkes, nos EUA, inaugurado em 1897. Com uma lente de 102 centímetros, é o maior telescópio deste género construído até hoje. Lentes maiores acabam por se deformar sob o seu próprio peso, para além de outras complicações ópticas, tornando-se inúteis para a observação astronómica.

Mas existe um outro tipo de telescópio, desenvolvido por Isaac Newton, que recorre a um espelho côncavo. Deste tipo foram também construídos telescópios cada vez maiores. Um exemplo é o telescópio Hale, no Observatório do Monte Palomar, na Califórnia, EUA, inaugurado em 1948. O seu espelho tem cinco metros de diâmetro. Em 1965 foi inaugurado na Rússia o BTA-6, com seis metros de diâmetro.

Telescópio Hale, no Observatório do Monte Palomar
Telescópio Hale, no Observatório do Monte Palomar, Califórnia, com um espelho primário de cinco metros de diâmetro.
Créditos: Palomar/Caltech

Estes foram os maiores telescópios ópticos do mundo durante quase três décadas. A partir daqui a construção de telescópios ópticos estagnou. Os espelhos necessários para observar na luz visível esbarraram com o limite dos seis metros de diâmetro, a partir do qual, também eles, se deformam sob o seu próprio peso.

Um espelho em puzzle

Os astrónomos a trabalhar com observações no visível viram-se restringidos durante quase três décadas a utilizar os instrumentos já existentes. Felizmente isso não aconteceu com as observações em frequências rádio, que não têm o mesmo tipo de limitações, tendo sido construídos radiotelescópios cada vez maiores, e até redes de radiotelescópios.

Jerry Nelson veio pôr um termo à estagnação da tecnologia dos telescópios ópticos. Formado em Física pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia e com um doutoramento em física de partículas, trabalhou em astrofísica na área dos fenómenos das altas energias.

Mas Jerry Nelson interessava-se também pelos instrumentos e telescópios. Em 1977, com um conjunto de relatórios técnicos, apresentou à Universidade da Califórnia a proposta de construir um telescópio com um espelho de dez metros de diâmetro.

A capacidade destes e de outros telescópios semelhantes de detetar fontes de luz muito ténues, ou de discriminar detalhes em objetos muito pequenos em termos astronómicos, permitiram aos cientistas avanços extraordinários na Astronomia.

A ideia até é simples. Recuperando a analogia da chuva, Nelson pensou que se não podemos ter um alguidar maior, podemos ainda assim apanhar mais água juntando muitos baldes. Ou seja, a ideia seria construir uma superfície espelhada a partir de vários espelhos mais pequenos.

Embora simples, a ideia é muito difícil de implementar. Estamos a falar de construir um puzzle côncavo com uma curvatura definida à precisão de uma milionésima parte do milímetro.

O design proposto por Nelson consistia em espelhos com a forma de hexágonos e dispostos numa estrutura como a de um favo de mel. O problema é que a forma em hexágono não seria igual para todos, cada um teria uma curvatura diferente da de todos os outros, e teriam de estar nivelados entre si sem desvios superiores à milionésima parte do milímetro.

Ao longo de vários anos, Jerry Nelson e a sua equipa foram resolvendo sucessivamente todos estes problemas. Projetaram o desenho de cada espelho, a forma de produzir individualmente a curvatura de cada um, e o sistema de computadores, sensores e sistemas robotizados para os manterem precisamente alinhados.

Espelho primário de um dos telescópio Keck.
Espelho primário de um dos telescópio Keck, constituído por 36 segmentos hexagonais.
Créditos: Ethan Tweedie

O projeto foi implementado no Observatório W. M. Keck, que recebeu o nome da fundação que o financiou. Foram construídos dois telescópios, cada um com um espelho de dez metros de diâmetro constituído por 36 segmentos hexagonais.

Construídos no topo da montanha Mauna Kea, no Havai, os telescópios Keck foram inaugurados em 1992, tornando-se nos maiores do mundo. O Observatório W. M. Keck é gerido pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia, pela Universidade da Califórnia e pela NASA.

Ver alvos mais pequenos e mais longe

Em 2007, os telescópios Keck foram destronados pelo Grande Telescópio das Canárias, este com uma superfície espelhada de 10,4 metros de diâmetro, construída também segundo o mesmo sistema de espelho segmentado. A capacidade destes e de outros telescópios semelhantes de detetar fontes de luz muito ténues, ou de discriminar detalhes em objetos muito pequenos em termos astronómicos, permitiram aos cientistas avanços extraordinários na Astronomia.

Este sistema inventado por Nelson permite também o envio de telescópios cada vez maiores para o Espaço.

Como exemplos, a descoberta de galáxias cada vez mais longínquas e recuadas na história do Universo (como a galáxia CR7, descoberta por David Sobral, então investigador no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e que utilizou, entre outros, os telescópios Keck), ou a deteção direta de planetas a orbitar outras estrelas.

Entretanto, o Observatório Europeu do Sul (ESO) inaugurara no Chile o Very Large Telescope (VLT) entre os finais da década de 1990 e o início dos anos 2000. Constituído por quatro telescópios, cada um com um espelho de 8,2 metros de diâmetro, o VLT tem de facto os maiores espelhos do mundo, se falarmos em termos de peça única.

Espelho primário de um dos telescópios do VLT, do ESO, com 8,2 metros de diâmetro.
Espelho primário de um dos telescópios do VLT, do ESO, com 8,2 metros de diâmetro.
Créditos: ESO.

No caso dos telescópios VLT a tecnologia utilizada é diferente. São espelhos finos, cuja curvatura é moldada em tempo real por um sistema robotizado no qual estão montados. Este sistema foi desenvolvido por Raymond Wilson, que em 2010 partilhou com Jerry Nelson e James Roger Angel o prémio para a Astrofísica da Fundação Kavli.

Os quatro telescópios do VLT podem até ser usados em conjunto, como se de facto tivéssemos um único telescópio com um espelho de 16,4 metros, e que seria efetivamente o maior do mundo. Isso aconteceu pela primeira vez em 2018 e deve-se em parte ao trabalho do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA). O IA desenvolveu o sistema óptico que conduz a luz dos quatro telescópios até a um instrumento de análise da luz, o ESPRESSO, em cuja construção o IA participou.

Telescópios maiores também no espaço

Jerry Nelson, que foi cientista de projeto do Observatório W. M. Keck até 2012, continuou a promover avanços nas tecnologias dos telescópios. Em 1999 fundou o Centro de Óptica Adaptativa da Universidade da Califórnia. A óptica adaptativa é uma tecnologia em que ele foi pioneiro e que permite compensar os efeitos de distorção da atmosfera nas observações do céu. É uma peça essencial para tirar o melhor partido destes grandes telescópios na Terra.

Maquete do espelho primário do futuro telescópio ELT, do Observatório Europeu do Sul (ESO).
Créditos: ESO.

Já mesmo depois de sofrer um acidente vascular cerebral, Nelson continuou a trabalhar no futuro projeto do Thirty Meter Telescope (TMT). Faleceu em 2017, mas a sua herança continua. O ESO prevê inaugurar em 2025 o Extremely Large Telescope (ELT), no Chile. Terá uma superfície espelhada de 39 metros de diâmetro composta por 798 espelhos!

Este sistema inventado por Nelson permite também o envio de telescópios cada vez maiores para o Espaço. O Telescópio Espacial Hubble tem um espelho único de 2,4 metros de diâmetro. O seu sucessor, o Telescópio Espacial James Webb (JWST), cujo lançamento está previsto para 2021, terá um espelho de 6,5 metros de diâmetro.

O espelho do JWST é composto por 18 segmentos, e parte destes irão dobrados dentro do foguetão para se abrirem na sua extensão total só quando o telescópio já estiver no espaço.

Espelho e estrutura do futuro telescópio espacial James Webb.
Espelho e estrutura do futuro telescópio espacial James Webb.
Créditos: NASA/Desiree Stover

Nota
O Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço associa-se à celebração dos 100 anos da União Astronómica Internacional (IAU) através de várias iniciativas ao longo de 2019. Uma delas consiste na rubrica “Estrelas que brilham no tempo”, em que recordaremos figuras importantes na história da astronomia dos últimos 100 anos. Esta rubrica será objeto de uma breve apresentação no início de cada uma das sessões das Noites no Observatório durante o ano de 2019.