Astronomia cidadã: que descoberta científica já fez hoje?

Atividade de divulgação da astronomia, no Planetário do Porto – Centro Ciência Viva

Exemplo de uma atividade de divulgação da astronomia, no Planetário do Porto – Centro Ciência Viva, motivada pela participação de cidadãos no projeto de ciência cidadã CoAstro. Créditos: Planetário do Porto - CCV.

Diariamente são publicados novos estudos científicos, muitos deles com a participação de cidadãos sem especialização no tema. Conheça a poderosa forma de produzir conhecimento que nos permite, a todos, participar na construção da ciência.

Por Ilídio André Costa1

Em maio de 2020, a Monthly Notices of the Royal Astronomical Society publicou um artigo com a validação da descoberta do primeiro planeta pelo Planet Hunters TESS. Não, este não é um telescópio, mas uma plataforma online em que qualquer pessoa pode auxiliar astrónomos a descobrir novos planetas.

Em astronomia, a colaboração entre cientistas e cidadãos não especializados é conhecida desde o século XVIII. Esta forma de colaboração, hoje chamada “ciência cidadã”, tem para alguns autores expoente máximo no trabalho conjunto realizado por cientistas profissionais e astrónomos amadores. Mas, e se esta colaboração for com pessoas sem qualquer experiência, ou até sem conhecimentos em astronomia? Indo mais longe: e se algumas delas nem sequer tiverem um gosto especial por esta ciência?

O envolvimento do público diretamente em investigação científica – ciência cidadã – é um conceito em franca expansão a nível mundial. Contribui, desde há já largos anos, para o avanço da ciência, mas também para chamar à ciência públicos menos interessados nas questões científicas.

O que é ciência cidadã?

Com a revolução científica, iniciada no século XVI, ocorreu a gradual formação de uma comunidade científica. Com ela nasceu também a necessidade de partilhar com o público as novas descobertas: emergia o conceito de divulgação científica. Contudo, o termo cientista surge apenas em 1833 numa resenha escrita por William Whewell. Por isso, será só após essa data que fará sentido aplicar o termo ciência cidadã.

Ainda assim, a ideia subjacente ao conceito de ciência cidadã deverá remontar, pelo menos na astronomia, ao século XVIII e ao trabalho de Edmund Halley para a observação, em 1715, do eclipse total do Sol em Inglaterra. As observações dos cidadãos revelaram-se bastante úteis, pois os colegas de Halley, em Oxford, nada puderam ver devido à nebulosidade desse dia, e os de Cambridge deixaram escapar a quase totalidade do fenómeno.

Em boa verdade, antes da profissionalização da ciência, no final do século XIX, a investigação estava a cargo de amadores: pessoas que não eram pagas para essa tarefa. Alguns destes amadores eram, de facto, os maiores especialistas na sua área, como o próprio Charles Darwin (1809 – 1882), que não tinha formação formal em ciência. Assim, o conceito atual de “ciência cidadã” preexistiu imerso nesta “ciência amadora”.

Porém, foi só em 1995 que o britânico Alan Irwin e o norte-americano Rick Bonney cunharam este termo, de forma independente e com significados diferentes. Irwin referia-se ao conceito de cidadania científica, com o qual destacava a necessidade de abrir a política e os processos científicos ao público, associando-o aos riscos e à ameaça ambiental. Bonney, por seu lado, utilizou o termo ciência cidadã para designar projetos científicos em que há participação de não especialistas, ou para projetos de divulgação do conhecimento produzido.

Comum aos dois autores foi a ideia de envolver o público de forma direta nos processos de investigação científica, ou seja, os participantes auxiliam na produção de novo conhecimento – são elementos das equipas de investigação. Contudo, esta dupla origem do termo é uma das causas para duas das visões existentes sobre o propósito da ciência cidadã.

Por um lado, afirma-se que a ciência cidadã é apenas mais uma técnica de investigação ao serviço da ciência: um outro método para fazer ciência. Sendo verdade, parece certo que se nos limitarmos a este entendimento, então o cidadão é apenas um instrumento ao serviço da ciência, ou, de forma mais crua, é mão-de-obra.

A ciência cidadã através das escolas revela-se uma poderosa ferramenta para, através das crianças e jovens, se poderem envolver adultos
A ciência cidadã através das escolas revela-se uma poderosa ferramenta para, através das crianças e jovens, se poderem envolver adultos que, de outra forma, nunca espontaneamente participariam em atividades de divulgação da ciência.
Créditos: Planetário do Porto – CCV

O segundo ponto de vista adiciona à ciência cidadã uma outra dimensão: a de ser uma forma de divulgar a própria ciência. Neste caso, aos resultados científicos do envolvimento do público, somam-se resultados em termos de divulgação e educação em ciência. Desta ciência cidadã resultará então a consciencialização, a compreensão e o envolvimento do público com a ciência. Por outro lado, tal participação permitirá desenvolver nos cidadãos visões mais atuais sobre o que é a ciência e sobre a forma como ela se constrói.

Um relatório da Comissão Europeia, e que contou com a participação de duas investigadoras portuguesas, compilou uma definição de ciência cidadã, construída a partir de dezenas de fontes bibliográficas. Esta definição descreve a ciência cidadã como uma atividade desenvolvida por cientistas cidadãos (no sentido em que esses cientistas não são especialistas na área de trabalho em questão), ou pelo público, ambos designados como não-cientistas, não-peritos, cientistas não profissionais (ou observadores treinados), amadores e entusiastas, ou leigos. Estes são usados, contratados ou, mais frequentemente, voluntariam-se para a investigação científica, trabalhando de forma colaborativa com cientistas profissionais em projetos científicos.

Como facilmente percebemos, nem sempre estes cidadãos têm à partida uma formação de base em ciência, mas, em alguns casos, necessitam de desenvolver competências específicas para poderem participar na investigação, investindo nelas algum do seu tempo.

Por que razão ser voluntário em ciência cidadã?

Há uma enorme tendência para a ciência contar, cada vez mais, com voluntários não especializados. Tal vai muito além, no caso da astronomia, do exemplo dos astrónomos amadores, muitos deles considerados profissionais-amadores (Pro-Am). O que se quer dizer é que qualquer um de nós pode (e deve) participar em ciência cidadã, ainda que nem todos o façamos como cientistas. Se esta participação traz grandes desafios, traz também oportunidades extraordinárias, tanto para os cientistas como para os voluntários.

Vivíamos, até ao início da pandemia Covid-19, momentos de crescimento acentuado da produção científica. Em 1981, a comunidade científica em Portugal produziu 308 artigos. Em 2018 (último ano para o qual existem dados) esse número foi de 24 026. Uma análise mais detalhada dos dados revela-nos mesmo que durante o ano de 2015 o número de publicações científicas em Portugal foi maior do que em toda a década de 1990.

De todo este novo conhecimento, o que chega ao grande público, quando chega, são os resultados científicos. Contudo, o conhecimento dos resultados não é suficiente para distinguir resultados científicos, de resultados obtidos por métodos não científicos. Apenas conhecendo o processo que conduziu a tais resultados, a forma como foram obtidos, validados e sancionados, podemos distinguir ciência, de falsa ciência e de notícias falsas. Desta forma, é essencial associar à compreensão dos resultados científicos o conhecimento sobre o processo que conduziu a esses mesmos resultados.

É aqui que a ciência cidadã é única: é, não só, um meio de contribuir para a produção de novo conhecimento, mas também uma forma de os cidadãos não especializados compreenderem e analisarem criticamente resultados e processos científicos. Tal é ainda mais relevante quando pensamos no manancial de decisões quotidianas que devemos basear ou suportar na ciência.

Assim, as vantagens da participação em projetos de ciência cidadã existem, quer para os cientistas, quer para os voluntários não especializados. Logo à partida todos podem “sair a ganhar”: os cientistas conseguem ajuda de voluntários, e estes têm oportunidade de contribuir para uma situação real de investigação científica.

Um estudo realizado em 2020, revelou os significativos contributos científicos e de divulgação científica da ciência cidadã no contexto da astronomia. Contudo, o conceito de ciência cidadã parece ser ainda desconhecido por muitos investigadores. Na verdade, os astrónomos partiram para o projeto sem vislumbrar grande relevância para o seu trabalho da participação em ciência cidadã. Contudo, no final, acabaram por valorizar a participação de não especialistas para a investigação que estavam a desenvolver, quer pelos contributos diretos para os resultados (análise de dados), quer pela criação de novas vias processuais para os alcançar.

No sentido de clarificar práticas, a “Associação Europeia de Ciência Cidadã” (European Citizen Science Association – ECSA), estabeleceu dez princípios-chave da ciência cidadã. Entre estes inclui-se a necessidade de, tanto cientistas como cidadãos, beneficiarem da participação nestes projetos, por exemplo, na forma de aprendizagem, ou de respostas a temas de relevância social local; a possibilidade de os cidadãos cientistas participarem nas várias etapas do processo científico, incluindo, por exemplo o levantamento de questões científicas para serem investigadas; ou ainda a exigência de o contributo dos cidadãos cientistas ser reconhecido publicamente, nomeadamente aquando da publicação dos resultados.

A ECSA é um consórcio de 14 instituições que inclui a Universidade de Coimbra, a Câmara Municipal de Figueira de Castelo Rodrigo e a Rede de Comunicação de Ciência e Tecnologia de Portugal (SciComPt). Lançou em abril de 2020 a versão de teste da plataforma EU-Citizens.Science, uma plataforma de partilha de conhecimento, ferramentas, formação e recursos para a ciência cidadã. Nela se incluem projetos portugueses que foram previamente validados como projetos de ciência cidadã.

É de assinalar ainda que também a Comissão Europeia, no seu Livro Branco para a Ciência Cidadã e que procura reforçar o envolvimento de cidadãos na ciência, apresenta de forma sintética os múltiplos impactos da ciência cidadã: na ciência, inovação, educação, sociedade, economia, política e no ambiente.

Como participar em ciência cidadã?

A publicação de artigos científicos que relatam práticas de ciência cidadã tem aumentado de forma muito acentuada, sintoma da importância que estes projetos têm vindo a assumir. A astronomia é mesmo uma das áreas científicas mais prolíficas em projetos de ciência cidadã a nível mundial. Um dos motivos para este facto poderá residir na quantidade massiva de dados que os astrónomos têm de tratar, provenientes de telescópios e instrumentos de observação cada vez maiores e mais sofisticados. Também a capacidade de processamento desses dados, pelas mais atuais e ubíquas ferramentas digitais, tem contribuído para a expansão deste tipo de projetos.

Somando as referências de apenas três páginas eletrónicas (IAU; NASA; ST), encontramos dezenas de projetos de ciência cidadã em astronomia. Muitos destes encontram-se em plataformas agregadoras de projetos, merecendo realce especial a já referida EU-Citizens.Science, mas também a Citizen Science Alliance – Zoouniverse e a SciStarter. Em qualquer uma delas é possível encontrar projetos, ansiosos por voluntários que obtenham dados (geralmente por meio de observação, identificação e monitorização), os analisem ou classifiquem. Alguns projetos convidam mesmo os participantes a definir as questões de investigação, a estabelecer conclusões e a divulgá-las.

No contexto português, uma publicação de 2015, editada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, afirma que, ainda “que o Atlas das Aves que Nidificam em Portugal Continental [1989] possa ser considerado o primeiro projecto português envolvendo cidadãos na recolha de dados de carácter científico, a maioria das iniciativas de ciência cidadã terá nascido, no nosso país, já neste século com o GripeNet”. Esta iniciativa monitoriza, desde 2005, a epidemia sazonal de gripe em Portugal com base na participação voluntária dos cidadãos.

No domínio da astronomia, muitos são os trabalhos que resultaram de ciência cidadã entre profissionais e astrónomos amadores portugueses (altamente especializados nesta ciência). Contudo, só em 2019, no Planetário do Porto – Centro Ciência Viva, surge o primeiro projeto de ciência cidadã português, realizado com a participação de não especialistas e que simultaneamente contribui para a investigação em astronomia em Portugal: o CoAstro – um Condomínio de Astronomi@. Na sua primeira edição, os voluntários auxiliaram os astrónomos do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) na determinação da composição química de 57 000 estrelas e determinaram as suas luminosidades a partir dos dados observacionais da missão espacial GAIA, da Agência Espacial Europeia (ESA). Analisaram também curvas de luz obtidas com o satélite TESS, da NASA, e assim contribuíram, através da plataforma online Planet Hunters TESS, para a deteção de planetas fora do Sistema Solar (exoplanetas).

Numa segunda fase, através das comunidades educativas de seis escolas do primeiro ciclo do ensino básico, todo o projeto foi voltado para a divulgação da astronomia: atividades em contexto de sala de aula, observações com telescópios, atividades laboratoriais, conversas com astrónomos, feiras de astronomia…

O CoAstro, entre muitos outros resultados, revelou, para o grupo analisado, que a imagem dos astrónomos saiu valorizada e o seu papel, nos processos científicos, reforçado: a abordagem de ciência cidadã mostra que todos podem contribuir para o avanço da ciência, apoiando e sendo apoiados pelos insubstituíveis cientistas.

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  1. Ilídio André Costa é professor dos ensinos básico e secundário, destacado no Planetário do Porto – Centro Ciência Viva. É autor de manuais escolares de Ciências Naturais e formador de docentes. É também investigador em Educação e Comunicação de Ciência no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço.