Novo catálogo revela enorme lacuna no conhecimento sobre os objetos mais extremos do Universo

Vista de todo o céu de fontes de energia superiores a 10 Giga eletrões-Volt (GeV). (Crédito: NASA/DOE/Fermi LAT Collaboration)

Com dados do Telescópio Espacial de raios gama Fermi, recolhidos ao longo de 16 anos, uma equipa liderada por um investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço revelou que desconhecemos a distância à maioria das fontes cósmicas mais energéticas já detetadas, o que tem grande impacto na nossa compreensão dos fenómenos mais extremos do Universo.

Chama-se First Cosmic Gamma-ray Horizon (1CGH) e é o mais recente catálogo de fontes extragalácticas de raios gama de alta energia. Publicado hoje1 na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, por uma equipa internacional2 liderada pelo investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA3) Bruno Arsioli,baseado em observações do Telescópio Espacial de raios gama Fermi (NASA), o catálogo identifica quase 2800 fontes de raios gama acima dos 10 Giga eletrões-Volt (GeV), incluindo 62 até agora desconhecidas. Este resultado representa um aumento de quase 80% face ao último catálogo deste tipo (3FHL).

Imagem artística do Telescópio Espacial de Raios Gama Fermi em órbita da Terra. (Crédito: NASA’s Goddard Space Flight Center/Chris Smith (USRA/GESTAR))

As fontes extragalácticas de raios gama não são muito comuns – atualmente, são conhecidas cerca de 7200 em todo o Universo. O líder da equipa, Bruno Arsioli (IA & Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa), explica que: “a maioria destas novas fonte são Blazares4, com picos de radiação sincrotrão extremos e elevados, que constituem a principal população de fontes extragalácticas de Tera eletrões-Volt (TeV), sendo por isso alvos prioritários para o futuro Observatório da Rede de Telescópios Cherenkov (Cherenkov Telescope Array Observatory – CTAO)”.

Sobre o artigo publicado hoje, Arsioli comenta ainda que: “neste trabalho realizámos uma extensa revisão da literatura sobre desvios para o vermelho, incorporando resultados de cerca de 70 campanhas de observação na banda do ótico. Verificámos que aproximadamente 72% das fontes presentes no catálogo 1CGH ainda têm estimativas pouco robustas, ou mesmo nenhuma, para a sua distância”.

Gráfico que mostra a energia de fontes de emissão de raios gama de alta energia, em função da distância a que se encontram. O gráfico também mostra que a energia é absorvida por uma espécie de “nevoeiro cósmico”, produzido pela luz de todas as estrelas e galáxias do Universo, conhecido como “Luz de Fundo extragaláctica” (EBL). A linha cinzenta representa uma absorção na ordem dos 90%, enquanto a linha cor de rosa abaixo representa uma absorção da ordem dos 10%.
Os símbolos representam a confiança na determinação da distância dos objetos: Círculos: Confiança elevada ; Setas: Só determinado o valor mínimo para a distância ; Cruzes: Distância incerta. (Crédito: Arsioli et al., 2025)

A ausência dessa informação limita o entendimento atual sobre a transparência do Universo aos fotões de mais alta energia, pondo em causa quão longe é realmente possível observar fontes extremas no Universo. “Esta lacuna no conhecimento atual representa um desafio para toda a comunidade de estudo de fenómenos de energia muito elevada, e evidencia a necessidade de campanhas de observação de seguimento na banda do ótico e infravermelho, focadas em determinar a distância dos Blazares detetados em raios gama.”, esclarece Arsioli.

Compreender a distância destas fontes cósmicas é essencial porque, à medida que os raios gama viajam pelo Universo, eles interagem com a Luz de Fundo Extragaláctica (EBL, na sigla em inglês), algo semelhante a um “nevoeiro cósmico de fotões”, que se estende do ultravioleta distante ao infravermelho próximo, composto sobretudo por radiação acumulada de estrelas e galáxias ao longo da história cósmica. Essa interação provoca a atenuação da radiação de muito alta energia proveniente de objetos distantes, deixando uma marca observável no seu espectro. Quanto mais longe estiver o Blazar, maior será esse efeito, por isso, conhecer a sua distância é crucial para medir com precisão a densidade da EBL em diferentes épocas do Universo.

A atenuação dos raios gama pela EBL define um limite para a maior distância a que é provável detetar fotões de energia muito elevada, limite conhecido como o Horizonte Cósmico de Raios Gama (sigla CGH, em inglês).

Este processo faz dos Blazares de raios gama sondas únicas para medir a densidade e evolução da EBL ao longo da história do Universo. Assim, Blazares distantes de raios gama oferecem uma forma alternativa de determinar a densidade da taxa de formação estelar (SFR) em épocas primordiais, possivelmente até à Época da Reionização5, com implicações para os estudos da evolução galáctica.

Para Polychronis Papaderos (IA & UPorto), líder da equipa “A história da formação de galáxias resolvida no espaço e no tempo” do IA: “o trabalho do Bruno Arsioli é um bom exemplo da investigação de ponta desenvolvida no IA, sobre a evolução e propriedades dos buracos negros supermassivos (BNSM), ao longo da história do Universo. É também um complemento indispensável para muitos outros projetos da nossa equipa”.

Alguns desses projetos de investigação do IA na área de galáxias e astronomia extragaláctica incluem: – Machine learning (um tipo de algoritmo de inteligência artificial de aprendizagem automática) aplicado a observações dos primeiros BNSM a se formarem no Universo;
– Simulações detalhadas da densidade superficial de AGNs distantes, que se espera venham a ser detetados pelo futuro telescópio de raios X da Agência Espacial Europeia (ESA) NewAthena, no qual o IA está a contribuir ativamente para a construção do seu Wide Field Imager;
– A preparação para estudos de modelação espectral de AGNs com o espectrógrafo multi fibra MOONS, que entrará em breve em operação no Very Large Telescope (VLT) do Observatório Europeu do Sul (ESO), sendo o IA co-instituição líder;
– O estudo de fontes rádio com elevado desvio para o vermelho, recorrendo aos precursores do Observatório Square Kilometer Array (SKAO), em particular a pesquisa Mapa Evolutivo do Universo (Evolutionary Map of the Universe – EMU), com o telescópio australiano ASKAP.

Estes dois últimos projetos contam com uma participação a alto nível de José Afonso (IA & Ciências ULisboa), coinvestigador principal responsável pelo VLT/MOONS e líder do Projeto de Ciência Principal sobre AGNs (AGN Key Science Project) do EMU.


Notas

  1. O artigo “Mapping the Cosmic Gamma-ray Horizon: The 1CGH Catalogue of Fermi-LAT detections above 10 GeV”, foi publicado na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society 24-2722-MJ.R2 (DOI: 10.1093/mnras/staf329
  2. A  equipa é composta por: Bruno Arsioli, Yu-Ling Chang, Luca Ighina.
  3. O Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) é a instituição de referência na área em Portugal, integrando investigadores da Universidade de Lisboa, Universidade de Coimbra e Universidade do Porto, e englobando a maioria da produção científica nacional na área. Foi avaliado como “Excelente” na última avaliação de unidades de investigação e desenvolvimento organizada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). A atividade do IA é financiada por fundos nacionais e internacionais, incluindo pela FCT/MCES (UIDB/04434/2020 e UIDP/04434/2020).
  4. Um Blazar é um tipo específico de núcleo de galáxia ativa (sigla AGN, em inglês). Um AGN deve a sua emissão ao disco de acreção de material a cair para o buraco negro supermassivo no centro da galáxia. Conforme acelera, ao ser atraído pela gravidade do buraco negro, este material aquece, emitindo enormes quantidade de energia ao longo do todo o espectro eletromagnético, incluindo fotões de raios gama de alta energia. Além do disco, os AGNs têm ainda jatos bipolares, sendo as  interações entre fotões de baixa energia e partículas relativisticas nestes jatos responsáveis por emitir fotões de alta energia, tais como raios gama. Os Blazares são AGN’s cujos jatos bipolares estão (praticamente) alinhados com a Terra, o que faz com que pareçam muito mais brilhantes do que outros tipos de AGNs.
    Mais informação sobre Blazares disponível no artigo “Faróis na vastidão cósmica – a ciência dos blazares“, publicado na página da National Geographic Portugal
    .
  5. A Época da Reionização ocorreu entre 150 milhões e mil milhões de anos depois do Big Bang, quando os primeiros objetos começaram a formar-se no universo primitivo, emitindo radiação com energia suficiente para reionizar o hidrogénio neutro. À medida que esses objetos se formavam e emitiam energia, o universo passou de um estado composto por átomos neutros para, mais uma vez, se tornar um plasma ionizado.

Contactos
Bruno Arsioli; Polychronis Papaderos (english only); José Afonso

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Ricardo Cardoso Reis; Filipe Pires (coordenação)