Telescópio Espacial James Webb observa objetos na periferia do Sistema Solar para revelar o melhor vislumbre do gelo primordial

Imagem artística de um Objeto Transneptuniano (Crédito: NASA/ESA/G. Bacon (STScI))

Com o auxílio do Telescópio Espacial James Webb, uma equipa internacional, que inclui um investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, identificou e categorizou a família química, dinâmica e locais de nascimento de alguns Objetos Transneptunianos.

Recorrendo ao telescópio espacial James Webb (NASA/ESA), uma colaboração internacional, em que está incluído Nuno Peixinho do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA1), observou duas regiões populadas por objetos gelados: na cintura de Kuiper, os denominados objetos transneptunianos (TNOs2) e entre as órbitas de Júpiter e Neptuno, os Centauros. Em dois estudos3,4, publicados hoje na conceituada revista Nature Astronomy, as equipas5,6 tentaram identificar a química, dinâmica e lugares de nascimento de alguns desses corpos, bem como a transformações que sofrem ao se aproximarem do Sol, informações vitais para melhorar os modelos de formação do nosso Sistema Solar e de outros sistemas planetários.

Nuno Peixinho (IA e Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra), comenta: “Após mais de 30 anos a estudar estes objetos ricos em gelos na Cintura de Kuiper, verdadeiros ‘fósseis vivos’ da formação do nosso sistema solar, conseguimos finalmente identificar a presença de gelos de água, dióxido de carbono e metanol, e de algumas moléculas orgânicas. Na sua formação, as concentrações dos diferentes compostos químicos dependeu essencialmente da distância ao Sol, o que nos permite agora começar a compreender como todos estes objetos se foram misturando pelo Sistema Solar”.

Os astrónomos conseguiram identificar várias moléculas que compõem estes fósseis gelados, recorrendo a observações com o Telescópio Espacial James Webb (JWST) na banda do infravermelho, radiação que não consegue atravessar a atmosfera terrestre.

A líder da equipa, Noemi Pinilla-Alonso (University of Central Florida e Instituto de Ciencias y Tecnologías Espaciales de Asturias – ICTEA) acrescenta que: “A importância desta descoberta reside no facto de podermos agora afirmar que o fator mais determinante na composição atual da superfície destes corpos é o material disponível no disco pré-solar na altura da formação dos planetesimais, objectos sólidos com um diâmetro superior a um quilómetro. Assim, o estado atual destes objetos transneptunianos está intimamente ligado ao inventário de gelos no nascimento do Sistema Solar, como se fosse uma fotografia congelada desse tempo”.

O principal objetivo do projeto era avaliar a proporção relativa de gelo de água, compostos orgânicos complexos, silicatos e gelos muito voláteis (isto é, facilmente evaporáveis) numa grande amostra de TNOs. Esta informação é vital para melhorar os modelos de formação do nosso Sistema Solar e de outros sistemas planetários, sendo igualmente relevante para a nossa compreensão da origem da água e da vida na Terra e, possivelmente, noutros locais do Sistema Solar ou fora dele.

É particularmente importante para estes modelos identificar as linhas de gelo7 destes gases. Por exemplo, no espaço, a água congela mais perto do Sol do que o dióxido de carbono ou o metanol, que por precisarem de temperaturas ainda mais baixas para congelarem, congelam mais longe da nossa estrela.

Devido à migração dos planetas gigantes, que se moveram bastante ao longo da história do Sistema Solar, todos os pequenos corpos ricos em gelos que estes apanharam pelo caminho acabaram por se dispersar e misturar. Ainda nos dias de hoje, as órbitas de muitos TNOs acabam por ser influenciadas pelo planeta Neptuno, cuja gravidade pode catapultá-los para o interior do Sistema Solar. Os TNOs que passaram a ter órbitas entre Júpiter e Neptuno designam-se por Centauros.

Nuno Peixinho explica que neste estudo observaram também “os chamados Centauros, que estão temporariamente entre Júpiter e Neptuno”. Devido à influência de Júpiter, a maioria destes Centauros acabam por ser empurrados para órbitas ainda mais próximas do Sol, transformando-se em cometas. Mas enquanto não se aproximam do Sol, “conseguimos identificar que estes possuem menos gelos do que quando estavam na Cintura de Kuiper, o que indica que muitos destes gelos se perdem lentamente, antes destes objetos se tornarem cometas ativos”, acrescenta o investigador português.

Nesta investigação a equipa detetou a presença de vários gelos, como água (H2O), dióxido de carbono (CO2), monóxido de carbono (CO), metanol (CH3OH) e outras moléculas ricas em carbono, oxigénio e nitrogénio (azoto), mas em proporções diferentes, levando-os à conclusão de que existem três grupos de TNOs com composições químicas distintas: os “tigela” (bowl), os “cova-dupla” (double-dip) e os “penhasco” (cliff). Os nomes foram atribuídos em função do aspeto que o seu espetro tem numa certa região do infravermelho.

Esquema da distribuição dos Objetos Trans-Neptunianos (TNO’s) ao longo do disco planetesimal. Cada cor destaca a zona em que uma determinada molécula de gelo distinta dominou, na altura da formação dos TNOs. Sobrepostos estão os espectros de cada grupo, com indicação das moléculas dominantes nessa zona. (Créditos: William D. González Sierra (Florida Space Institute, University of Central Florida)

Os resultados deste estudo sugerem que os TNOs de tipo “tijela”, muito ricos em gelo de água, ter-se-iam formado mais perto do Sol do que os de tipo “cova-dupla”, muito mais ricos em dióxido de carbono e até com algum monóxido de carbono, com os de tipo “penhasco”, com pouco gelo de água mas bastante gelo de metanol, a formar-se ainda mais longe. “Demonstrámos que se pode estudar, quase em tempo real, a complexa transformação da composição química das superfícies destes objetos, ao longo do seu percurso entre a Cintura de Kuiper e o Sistema Solar interior”, afirma Nuno Peixinho.

Nuno Peixinho participou na análise, discussão e interpretação dos dados observacionais de espetroscopia de TNOs e Centauros obtidos com o JWST, com particular ênfase na análise estatística, na comparação entre os novos dados de espetroscopia e os resultados já obtidos com fotometria. “Ainda temos muito mais coisas para analisar e já submetemos mais propostas de observação ao James Webb para conseguirmos mais dados e, esperemos, novas descobertas. Estes resultados ajudarão também na questão do papel que tiveram no surgimento de vida na Terra os muitos cometas que nela caíram no passado, trabalho ao qual se dedicam muitos astrobiólogos e ainda sem resposta”, conclui o investigador do IA.


Notas

  1. O Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA) é a instituição de referência na área em Portugal, integrando investigadores da Universidade de Lisboa, Universidade de Coimbra e Universidade do Porto, e englobando a maioria da produção científica nacional na área. Foi avaliado como “Excelente” na última avaliação de unidades de investigação e desenvolvimento organizada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). A atividade do IA é financiada por fundos nacionais e internacionais, incluindo pela FCT/MCES (UIDB/04434/2020 e UIDP/04434/2020).
  2. Os Objetos Transneptunianos (sigla TNOs em inglês), também designados como Objetos da Cintura de Kuiper, são todos os corpos menores do Sistema Solar que orbitam a distâncias maiores do que a órbita de Neptuno (cerca de 30 unidades astronómicas). Estes são considerados verdadeiros fósseis da formação do Sistema Solar, pelo facto de se encontrarem muito distantes do Sol e a baixas temperaturas, tendo, por isso, sofrido poucas alterações físicas e químicas desde a sua formação, há cerca de 4,6 mil milhões de anos. A Cintura de Kuiper, a região onde também se encontra o planeta-anão Plutão, é o maior reservatório observável de água (congelada) no nosso Sistema Solar.
  3. O artigo “A DiSCo JWST portrait of the primordial Solar System through its trans-Neptunian objects”, foi publicado na revista Nature Astronomy, Vol. 8, Issue 12 (DOI: 10.1038/s41550-024-02433-2).
  4. O artigo “Deciphering the thermal evolution of trans-Neptunian objects through JWST Centaurs observations”, foi publicado na revista Nature Astronomy, Vol. 8, Issue 12 (DOI: 10.1038/s41550-024-02417-2).
  5. A equipa de 3.) é composta por:. Noemí Pinilla-Alonso, Rosario Brunetto, Mário N. De Prá, Bryan J. Holler, Elsa Hénault, Ana Carolina de Souza Feliciano, Vania Lorenzi, Yvonne J. Pendleton, Dale P. Cruikshank, Thomas G. Müller, John A. Stansberry, Joshua P. Emery, Charles A. Schambeau, Javier Licandro, Brittany Harvison, Lucas McClure, Aurélie Guilbert-Lepoutre, Nuno Peixinho, Michele T. Bannister e Ian Wong.
  6. A equipa de 4.) é composta por: Javier Licandro, Noemí Pinilla-Alonso, Bryan J. Holler, Mário N. De Prá, Mario Melita, Ana Carolina de Souza Feliciano, Rosario Brunetto, Aurélie Guilbert-Lepoutre, Elsa Hénault, Vania Lorenzi, John A. Stansberry, Charles A. Schambeau, Brittany Harvison, Yvonne J. Pendleton, Dale P. Cruikshank, Thomas Müller, Lucas McClure, Joshua P. Emery, Nuno Peixinho, Michele T. Bannister e Ian Wong
  7. Cada gás tem a sua própria linha de gelo, isto é, a distância ao Sol a partir da qual esse gás já conseguia congelar, formando grãos de gelos, antes da formação dos planetas. Sob o Sol de hoje, a água congela aproximadamente a 3 unidades astronómicas (u.a.) do Sol, o metanol congela a cerca de 5 u.a., o dióxido de carbono congela a mais de 15 u.a. e o monóxido de carbono congela a mais de 120 u.a. Uma unidade astronómica, ou u.a., é a distância média da Terra ao Sol e corresponde a cerca de 150 milhões de quilómetros.

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